segunda-feira, 1 de março de 2010

O povoado de Porto Torrão (Ferreira do Alentejo): Vida e morte de um gigante do Calcolítico


JOSÉ GALAZAK

Prefácio

Depois da derrota dos Godos na Batalha do Rio Guadalete, na actual Andaluzia, em 711, as forças muçulmanas avançam sem pressa pela velha Hispânia romana, há três séculos governada por duques e condes de raça germânica. As cidades caem uma a uma. Segundo a lenda Roderico, o último rei godo a governar na Península Ibérica, foge para Viseu e aí morre, a lamber as feridas. Enfim vencedores, os Árabes não demoram a instalar-se. A terra é sua e rebaptizam-na. À Peninsula Ibérica darão o nome de Al-Andalus, e o Andalus será dividido em quatro grandes áreas geográficas. Ao Ocidente, ao território hoje português, a que os Gregos tinham chamado Ophiussa e os Romanos Lusitânia, chamariam os Árabes Al-Gharb al-Andalus. O Alentejo dormia na altura à sombra deste nome, pois não tinha nenhum outro que o diferenciasse.

Foram os netos de Vímara Peres e dos seus companheiros, reunidos em torno de Afonso Henriques, quem baptizou as imensas planícies do Sul. O corónimo «Terras d’Além Tejo» nasceu do olhar sobranceiro dos homens do Norte sobre as terras e os homens do Sul. Era o imenso território que ficava além das fronteiras de Portugal, de um novo reino que, nascido entre o Minho e o Mondego, esforçadamente abraçava as terras meridionais. E sempre nos foi dito que nós, homens e mulheres do Alentejo, viemos do Norte, com os conquistadores, para colonizar as terras arrancadas pela espada aos Mouros. Mas essa é uma grosseira mentira e uma ofensa à nossa memória colectiva!

Esta terra guarda as nossas mais profundas raízes. Fomos nós que fizemos as pinturas e as gravuras do Escoural. Fomos nós que construímos Almendres e pusemos de pé mais de quatrocentos menires por todo o Alentejo. Fomos nós que amontoámos os concheiros do Vale do Sado, no distante Mesolítico. Fomos nós que trabalhámos os campos, durante incontáveis gerações. Fomos nós que construímos o grande povoado calcolítico de Singa/Porto Torrão, em Ferreira do Alentejo. Fomos nós que construímos os grandes povoados da Idade do Bronze na Serra d’ Ossa. Fomos nós que construímos a grande muralha pré-romana de Mértola, envolvendo uma cidade de 65ha, uma das três maiores da Península Ibérica no seu tempo. Fomos nós que gravámos as estelas com a escrita do Sudoeste em Ourique e Almodôvar. Foi contra nós e contra os nossos irmãos da Betúria que se bateram os Romanos nas guerras lusitanas, onde fomos capitaneados por Viriato (de acordo com as últimas teorias, que propõem uma nova leitura das fontes clássicas). Foi contra nós que os Romanos “semearam” por todo o Alentejo torres e fortins com guarnições militares (em Ferreira do Alentejo temos o recinto-torre de Casa Branca, de grandes dimensões). Foi entre nós que Augusto instalou os companheiros de Marco António, derrotados na Batalha de Áccio e povoadores da cidade de Pax Iulia.

Sempre aqui estivemos. Quando os Romanos nos conquistaram aqui ficámos, trabalhando nos grandes latifúndios, as villas que enxameavam os férteis campos do Alentejo. Assistimos à chegada dos Suevos, dos Alanos e dos Vândalos. E assistimos à queda da Suévia, o primeiro estado nascido em território português, quando Leovigildo, o rei godo, conquistou Braga, a capital dos Suevos e desterrou o seu último rei, Andeca, para um mosteiro de Beja. E quando os Árabes vieram, em 711, destruíndo com um sopro o dividido reino dos Godos, continuávamos aqui.

Esta é a nossa terra e o nosso mundo. E mesmo quando partimos, em busca de melhores condições de vida, nunca esquecemos o berço que nos viu nascer. E como poderíamos? Estamos ligados a este berço há milhares e milhares de anos. É uma corrente fortíssima, que nem o tempo nem a distância conseguem quebrar…

Este trabalho monográfico dedica-o o autor a todos os seus conterrâneos. O título do trabalho, identificando a nossa vila como SINGA, pretende repor a verdade histórica. Se a origem toponímica de Ferreira do Alentejo recua a uma pretensa resistência às invasões germânicas (facto nunca comprovado) a verdade é que o topónimo SINGA, desde sempre atribuído a Ferreira, pode recuar ao Neolítico Final, há mais de 5 mil anos, ao grande povoado hoje conhecido entre os arqueólogos por Porto Torrão, às portas da vila, sobre a ribeira de Vale d’ Ouro.

Com uma superfície calculada de aproximadamente 100 ha, foi durante muito tempo o maior de todos os povoados construídos em território português (a actual cidade de Évora, intramuros, dispõe de uma área exactamente igual) e durante mais de mil anos – muito mais tempo que toda a História de Portugal – terá sido o centro político, cultural e religioso do Baixo Alentejo. É francamente possível que o topónimo SINGA que nos chegou até hoje, nunca referenciado nas fontes clássicas (há apenas referência a uma única localidade romana, Serápia, algures na freguesia de Peroguarda) seja apenas o eco dessa glória distante, que os homens e as mulheres de Ferreira nunca deixaram cair no esquecimento. Só esse facto é merecedor da nossa profunda admiração.

E que nos seja perdoado esse “pecado” científico, mas neste despretensioso trabalho referir-nos-emos sempre ao sítio arqueológico de Porto Torrão como SINGA. Estaremos assim solidários com todos aqueles que pensam que Ferreira do Alentejo deveria retomar o seu antigo nome – SINGA – reclamando para a vila e para todos os que aqui nasceram a glória que o tempo quase apagou. Esse facto certamente reforçará o nosso orgulho e o nosso amor pela terra maravilhosa que nos viu nascer. E quem sabe se, recuperando o seu velho e glorioso topónimo, não recuperará também a nossa vila a sua antiga glória. Passo a passo se vence a estrada…


O início de uma longa caminhada

O Homem geneticamente moderno, o Homo sapiens sapiens, terá alcançado a Península Ibérica há cerca de 40 mil anos, cinco mil anos depois de ter partido do seu berço original no Médio Oriente, mas iria precisar de 10 mil anos para substituir de vez o Homem de Neandertal, a espécie que o precedera, pois há 30 mil anos ainda temos provas da existência deste último na gruta da Figueira Brava, na Serra da Arrábida, um dos seus últimos refúgios conhecidos. O Homo sapiens sapiens tornar-se-ia enfim o senhor absoluto de toda a Península Ibérica, como já o era além-Pirinéus.

O Alentejo foi assim lentamente ocupado por grupos de caçadores-recolectores, encontrando-se as provas mais antigas na gruta do Escoural, próximo de Montemor-o-Novo. Ocupadas por populações itinerantes ao longo de milhares de anos, as pinturas e gravuras, de estilos distintos, recuarão até há cerca de 18 mil anos, quando a Europa conhecia o último máximo glaciário (Würm).

A paisagem do Alentejo era então muito diferente daquela que hoje conhecemos. As árvores tinham recuado para refúgios seguros no Sul, longe da tundra e das moreias glaciárias que ocupavam boa parte do interior da Península Ibérica. Em toda a frente atlântica, muito mais extensa que a actual com a diminuição do nível médio das águas do mar, marcavam presença as dunas e as «landes» eternamente varridas pelos ventos do Norte, e nas terras afastadas do litoral dominavam as estepes frias, percorridas por manadas de cavalos e auroques, os mesmos que os caçadores do Escoural gravaram e pintaram.

Com o fim da Idade Glaciária e o recuo dos gelos para Norte, a floresta parte dos seus refúgios meridionais à conquista da Europa, e rapidamente o carvalho (quercus) se torna o rei das florestas temperadas europeias. Mas as oscilações climáticas foram sempre uma constante, e as árvores “caminhavam” para Norte e para Sul reflectindo os períodos de maior ou menor rigor climatérico. A azinheira chegou em períodos de calor a alcançar a Cantábria, pois aí sobrevive, ainda hoje, nos vales, em grandes rusticidade, sobrevivendo ao frio e à neve. O carvalho-português (cerquinho) nunca desapareceu do Alentejo, mantendo importantes manchas florestais (das maiores e mais belas do país!) na foz do Mira e na Serra do Cercal, a que deu o nome. E por toda a nossa região ainda sobrevivem, tantas vezes contra a vontade dos homens, as faias, os freixos, os salgueiros e os choupos, nas matas ribeirinhas ou em terrenos frescos, resquícios das velhas e ricas florestas que recobriam todo o Alentejo, e onde só as dunas terciárias do litoral, da foz do Sado até Sines, as afastavam, pois aí era o domínio do pinheiro, tal como ainda sucede hoje em dia.


O adensamento florestal do Alentejo, iniciado há cerca de 10 000 anos, depois do último período glaciário, obrigou as populações que habitavam o interior a procurar o litoral e a margem dos rios. É um fenómeno comprovado arqueologicamente em todo o ocidente peninsular. Na foz do Mira, nas praias de Sines, nos vales do Sado e do Muge, aqui resistiram e sobreviveram, durante milhares de anos, os homens que mais tarde haveriam de recolonizar o território que hoje designamos por Alentejo. O intrépido caçador de cavalos e auroques especializava-se agora nas artes da pesca e da recolha de bivalves.

Uma das mais vincadas características deste modo de vida são os denominados «concheiros» – verdadeiras colinas de cascas de moluscos acumulados ao longo de incontáveis gerações, tanto nas margens do Muge (ribeiro da margem esquerda do Tejo) como no Vale do Sado. Aqui os efeitos das marés chegavam muito para além do que é hoje Alcácer do Sal, nos concheiros de Arapouco, Amoreira, Vale de Romeiras, Cabeço do Pez e Cabeço do Rebolador, onde foram encontrados vértebras de corvina e raia, assim como dentes de dourada, pargo e choupa. Encontraram-se ainda dentes de um anequim, um tubarão de grandes dimensões, que pode atingir até quatro metros de comprimento.

O berbigão era, nos concheiros do Vale do Sado, o rei dos moluscos, seguido de perto pela lambujinha. A ostra, o búzio e o lingueirão estão também presentes. Dos mamíferos o veado e o javali encontram-se largamente representados, assim como o coelho e a lebre. O auroque e o cavalo, omnipresentes na época glaciar, segundo nos mostram as pinturas e as gravuras do Escoural, têm apenas uma presença residual.

O confronto de dois mundos

A chamada «Revolução Neolítica» (a domesticação dos cereais e dos animais) iniciada no Próximo Oriente, alcançou o nosso território por via marítima, cerca de 5500 a.C., quando pequenos grupos de colonos, vindos do Mediterrâneo e trazendo com eles a cerâmica cardial, se instalaram em Sagres e na Estremadura. Numa primeira fase o Alentejo terá ficado arredado deste primeiro «movimento civilizador», pois os pioneiros neolíticos terão dado preferência a ecossistemas em tudo semelhantes àqueles que deixavam para trás, e que o Barlavento algarvio e o Maciço Calcário Estremenho, onde se instalaram, reproduziam. Mas a difusão do chamado «pacote neolítico» (domesticação do trigo, assim como da ovelha, da cabra e do boi, que possibilitou que o antigo recolector se tornasse produtor dos bens indispensáveis à sua sobrevivência) terá sido muito rápida e as populações do litoral alentejano, entre Sines e a foz do Mira, cerca de 5000 a.C. já tinham absorvido integralmente as novas técnicas produtivas. A agricultura e a pastorícia davam os seus primeiros e tímidos passos no Alentejo.


A progressão das novas técnicas produtivas foi muito rápida por todo o litoral alentejano, e os colonos neolíticos, numa dezena de gerações, fizeram desaparecer as velhas actividades de caça e recolecção e o Homem tornou-se produtor dos seus próprios alimentos. No Vale do Sado, contudo, as populações que aí habitavam há milhares de anos, iriam resistir durante muitas mais gerações ao canto da sereia das populações neolíticas, e os dois últimos concheiros, com as suas populações mesolíticas (Amoreira e Cabeço do Pez) só seriam abandonados por volta de 4750 a.C.

Explorando ecossistemas muito ricos, perfeitamente integrados com o rio (então muito mais generoso do que hoje), conhecendo já sofisticadas formas de sedentarização, pescadores e marisqueiros especializados (tudo leva a crer que utilizassem redes de pesca para a captura da corvina, por exemplo, largamente representada no concheiro de Arapouco), a estas populações piscatórias a agricultura e a pastorícia nada diziam. O seu conservadorismo não resultava de qualquer dificuldade atávica em aceitar o progresso, mas da certeza de que o seu modo de vida não era inferior àquele que lhes propunham. E quando por fim aceitaram o inevitável e partiram, trocando o seu velho berço no vale do Sado por novos destinos nas terras do interior, estas antiquíssimas populações (os austeros antepassados dos homens e mulheres do Alentejo) iriam provar estar na vanguarda dos povos do seu tempo. A brilhante «cultura megalítica» que nos deixaram no Alentejo Central, única na Península Ibérica e das mais belas da Europa, imorredoiro monumento à sua tenacidade e à sua capacidade criativa e construtora, aí está para o comprovar.

As primeiras populações agro-pastoris

Dois caminhos distintos seguiram as populações que habitavam o vale do Sado: um ramo seguiu para Leste, para o Alentejo Central, onde a abundância de grandes pedras os levaria a construir complexas estruturas megalíticas, desde Montemor até Reguengos de Monsaraz, só se detendo diante da fronteira natural do Guadiana. Segundo as últimas teorias terão sido estes homens e estas mulheres do Alentejo Central os pioneiros da construção megalítica e os difusores das várias expressões que iremos encontrar posteriormente, quer na Europa Atlântica, quer no mundo mediterrânico. Mas não é este ramo de povos que nos interessa por agora, pois o concelho de Ferreira não viveu o milagre megalítico.

Um segundo ramo das populações do Vale do Sado, já neolitizadas, seguiu para Sul, subindo o curso do rio, onde certamente se teriam cruzado com pequenos grupos que, a partir do litoral, começavam a ocupar o interior. São grupos de pastores e agricultores, que procuram pastos para os seus rebanhos e terrenos férteis para cultivar. Serão estes os antepassados dos homens e mulheres do Baixo Alentejo, o fundo populacional sobre o qual se sobreporão, numa complexa malha humana, todos os que depois puxaram da espada nesta terra, para a reclamar para si, Celtas, Romanos, Germanos ou Árabes. Uns vinham e ficavam, unindo-se aos velhos ocupantes; outros vinham, no fluxo da conquista, dominavam e punham a trabalhar para si as velhas populações, e no refluxo partiam, quando os ventos da guerra mudavam.

Desconhecemos praticamente tudo sobre as primeiras sociedades agro-pastoris que evoluíram no Baixo Alentejo. O tempo foi avaro para nós e da sua cultura material nada nos chegou, pois a terra acabaria reclamando para si quase tudo o que dera ao Homem, e o que não se perdeu encontra-se hoje sepultado, longe dos nossos olhos e da nossa curiosidade.


Ao invés, talvez não seja difícil para nós traçar alguns dos hipotéticos itinerários desses nossos antepassados que recolonizaram o Baixo Alentejo a partir do Vale do Sado, subindo o rio. Os primeiros grupos terão acompanhado o curso do Xarrama até à sua nascente, e ter-se-ão eventualmente “espalhado” pelo concelho de Viana do Alentejo, onde as terras eram férteis e a água abundante. Outros grupos terão eventualmente optado por seguir a ribeira de Odivelas, ocupando os concelhos de Ferreira do Alentejo e Alvito, numa primeira fase, progredindo depois para os actuais concelhos da Vidigueira, Cuba e Beja, ocupando a maior mancha de solos barrosos do Alentejo, de superior qualidade agrícola (solos de classe A ou B).

Não devemos cair no erro de imaginar o mundo destes nossos distantes antepassados como um mundo idílico, uma Idade de Ouro onde a paz dominava a relação entre os distintos grupos humanos que povoavam o Alentejo. Longe disso. A violência guerreira, imanente ao ser social, está omnipresente nas sociedades sem Estado, e os antigos caçadores transformam-se a pouco e pouco nos guerreiros, detentores do monopólio da capacidade militar e da violência organizada. A guerra entre várias sociedades humanas tornar-se-á mesmo necessária, para que o grupo dos guerreiros, órgão especializado, não se transforme num órgão separado do corpo social, hostilizando-o e tomando o poder político. Na verdade a guerra, a violência organizada contra grupos exteriores, era a forma de a sociedade prevenir a violência contra si mesma, adiando o inevitável: a sua divisão entre os grupos que detêm o poder e a capacidade militar (os guerreiros) e o resto da sociedade (os súbditos).

A consolidação do sistema agro-pastoril no Baixo Alentejo decorreu durante todo o IV milénio a.C. A introdução de melhorias tecnológicas no sistema produtivo, de que ressalta o aproveitamento da força de tracção animal para a lavoura de solos pesados, terá conduzido a um significativo aumento demográfico. O desmatamento da região dos “barros de Beja” (por cortes e queimadas) e a preparação dos campos agrícolas e de pastoreio terá tido um grande incremento por esta altura. As populações, fixando-se, ocuparam os territórios e consideraram-nos sua propriedade. O estado de guerra em que viviam estas populações (todos contra todos, que só as alianças pontuais mitigavam) conduz à fortificação dos povoados. Na feliz definição de A. Leroi-Gourhan «O agricultor constrói o mundo em círculos concêntricos em torno do seu celeiro».

Um povoado fortificado no Torrão

O mais antigo e, simultaneamente, mais exótico dos povoados fortificados do Baixo Alentejo foi construído num cabeço, sobre o rio Xarrama, dominando solos de grande aptidão agrícola. Já enquadrado no grupo das comunidades agro-metalúrgicas (Calcolítico), o povoado do Monte da Tumba, no Torrão, é singular a vários níveis. Na fase I de ocupação (fins do IV milénio a.C.) foi construída uma primeira muralha, que numa fase posterior (fase 1B) se complexifica com a construção de grandes torres semicirculares.

De pequena dimensão, pouco mais que uma «quinta» fortificada, não acomodando mais que algumas dezenas de almas, o Monte da Tumba denuncia um corpo social com uma estrutura e uma organização sólidas, apto a planear e a executar estruturas arquitectónicas de grande complexidade para defender os seus excedentes alimentares, uma grande riqueza cobiçada por populações rivais. E serão essas mesmas populações que finalmente a destruirão pelo fogo, arrasando as suas poderosas muralhas. Voltará a erguer-se, alcançará mesmo uma fase adiantada do Calcolítico, mas não voltará a encontrar a sua antiga glória.

O estudo antracológico e polínico deste povoado permite-nos compreender o que seria a floresta do Sul do Alentejo no III milénio a.C. Estão presentes o pinheiro-manso e a azinheira, assim como várias outras espécies de pinheiro, o zambujeiro e várias espécies de carvalhos. Estão ainda presentes o choupo, o salgueiro e o freixo. A maior singularidade era a de, por esta altura, o carvalho de folha semi-caducifólia fazer parte da floresta do Alentejo, lado a lado com o carvalho de folha perene (azinheira e sobreiro), denunciando um ambiente mesomediterrânico, com Verões mais suaves do que aqueles que hoje conhecemos. Os bosques mistos de carvalhos estender-se-iam então por boa parte do Alentejo, longe da realidade que hoje conhecemos, havendo seguramente muitas regiões onde os carvalhos de folha semi-caducifólia seriam dominantes, como acontece ainda hoje na foz do rio Mira e na Serra do Cercal. Deveria ser um espectáculo deslumbrante, pois as semi-caducifólias, com o seu hábito marcescente, deixam murchar e secar a folhagem no Outono, retendo-a presa aos ramos até à Primavera seguinte. São as únicas no nosso país que o fazem, sobressaindo na paisagem pelo tom dourado das suas copas.

Singa – Uma “cidade” rodeada de fossos

Não sabemos quando se terão estabelecido as primeiras populações nas margens da ribeira de Vale d’Ouro, a escassos 2 km de Ferreira do Alentejo. Os primeiros a chegar terão sido os pastores transumantes, mas a qualidade do solo cedo terá atraído agricultores, que terão começado por abrir clareiras nas cerradas florestas, o princípio do desmatamento e da “libertação” dos barros de Beja para a produção cerealífera. E seria nas margens do Vale d’Ouro, às Portas de Ferreira do Alentejo, que se estruturaria, durante o Calcolítico, o maior de todos os povoados do território português e um dos maiores da Península Ibérica, o povoado que acreditamos ter tido o nome de Singa, mas que seria “rebaptizado” como Porto Torrão, por ter sido este o local da sua descoberta, e assim passando a ser conhecido nos meios científicos.

José Morais Arnaud, o arqueólogo que o descobriu e aí realizou as primeiras escavações, atribuiu-lhe uma área de cerca de 100 ha (1 km de diâmetro). Se tivermos em conta que, no período árabe, Lisboa tinha 16 ha e Silves 13 ha (contra 12 ha de Coimbra, a capital do pequeno reino de Afonso Henriques), e de que Beja, a maior de todas as cidades do ocidente peninsular – então inteiramente rodeada de fortes muralhas, que a Reconquista destruiria – tinha uma área de 20 ha, então melhor poderemos avaliar o “gigantismo” do povoado calcolítico de Singa/Porto Torrão.

À semelhança dos outros três grandes povoados do Sudoeste peninsular – Pijotilla, Valencina de la Concepción e Marroquiés de Bajo – também Singa/Porto Torrão não dispunha de muralhas. Mas a inexistência de muralhas não significa falta de preocupações defensivas dos seus habitantes. O permanente estado de guerra em que se encontravam mergulhados os diversos grupos humanos no Neolítico Final/Calcolítico Inicial (não sendo de excluir a competição entre pastores nómadas, com os seus círculos familiares alargados, e agricultores sedentarizados, de que o Monte da Tumba nos parece dar um eloquente testemunho) terá levado à construção de sistemas defensivos para defesa das populações e preservação dos excedentes agrícolas. Os povoados foram rodeados por um ou mais anéis de muralhas, ou por complexos sistemas de fossos. Num e noutro caso a função era a mesma: dificultar ou impedir o assalto e a conquista do povoado.

Singa, ao que tudo indica, nunca terá conhecido muralhas (pelo menos no seu perímetro exterior) e os seus habitantes terão desde muito cedo (desde o Neolítico Final, cerca de 3200 a.C.) optado pela construção de um sistema defensivo baseado em fossos protectores, ao ponto de hoje se poder definir o povoado como um recinto de fossos. Nas escavações levadas a cabo em 2002, e conduzidas pelo arqueólogo António Valera, foram descobertos dois fossos sub-paralelos, com cerca de 3 m de profundidade e entre 4 a 6 m de largura, sendo um deles datado do Neolítico Final (o que atesta grande antiguidade na ocupação do território) e outro do Calcolítico. Uma distância de 8 m separa os dois fossos.

Não sabemos se existiriam ou não outras linhas de fossos, tal como não sabemos se os fossos seriam acompanhados de muralhas ou paliçadas, a exemplo do que tem sido registado noutros povoados da mesma época. Admite-se hoje que as paliçadas terão constituído as primeiras formas de delimitação de espaços habitacionais, tendo-lhes sucedido os fossos e, mais tarde, as muralhas. Para além das suas funcionalidades defensivas, admite-se que os fossos pudessem ter igualmente outras funcionalidades, tais como drenagem das águas pluviais e gestão dos recursos hídricos para apoio das actividades agrícolas, nomeadamente relacionadas com a horticultura.

Ainda não existem dados relativamente à planta e à dimensão de Singa. Nos povoados conhecidos parece haver uma tendência geral para a circularidade, pois o círculo é a fórmula geométrica mais comum no mundo natural, e dominante na arquitectura no período em que Singa se afirmou. Há seguramente uma carga simbólica no círculo, que nos escapa mas que se encontra ligada ao sagrado. Nos povoados do Sudoeste, quando existem vários fossos, parece haver uma tendência para a disposição concêntrica. No caso do povoado dos Perdigões os fossos exteriores, que têm nove metros de largo, descrevem uma circunferência perfeita, só interrompida – sem nunca perder a forma circular – para englobar a área da necrópole.

1000 anos de domínio e poder

As populações do Neolítico Final/Calcolítico Antigo aglomeravam-se em pequenos povoados, que raramente excediam 1 ha, eventualmente restritos a um único grupo familiar. A proliferação de povoados teria resultado de um processo de “colonização” interna do Alentejo, quando a sobrepopulação ameaçava a sobrevivência do povoado original e alguns dos casais mais jovens se viam constrangidos a partir e a fundar novos povoados.

Desconhecemos por enquanto as origens de Singa/Porto Torrão. Não sabemos se seria inicialmente um povoado de pequena dimensão, como centenas de outros que pontilhavam o Alentejo, ou se a localização privilegiada e a abundância de água lhe terá permitido desde logo estabelecer primazia sobre os restantes povoados da região. É bem possível que tenha constituído um dos povoados nucleares no Neolítico Final, numa região que, grosso modo, abrangeria o actual concelho de Ferreira do Alentejo. Teria havido uma expansão inicial do povoamento, a partir de Singa, depois seguida de uma contracção, do que resultaria a concentração dos efectivos demográficos no povoado original? É bem possível. Quando o fizeram e em que circunstâncias políticas e sociais se realizou esse movimento gregário que juntou em Singa milhares de habitantes, não o sabemos. O que é facto é que, pela necessidade de defesa das populações, Singa terá emergido como centro decisor de um vasto território, congregando eventualmente estruturas políticas, comerciais e religiosas. É pelo menos este o modelo que pré-historiadores e arqueólogos admitem para os grandes povoados do Sudoeste peninsular.

Durante mais de mil anos dezenas de gerações de homens e mulheres nasceram, viveram e morreram em Singa. Os seus contingentes armados, constituídos por muitas centenas de lanceiros, terão permitido estender a sua influência (eventualmente domínio político e militar) até muito longe, controlando a bacia terciária do Sado, os barros de Beja e talvez o mais importante, as inesgotáveis reservas cupríferas do Baixo Alentejo, sendo os fornecedores de cobre da Estremadura, região rica e desenvolvida mas onde este metal não existia (Victor Hurtado, arqueólogo espanhol, defende mesmo que a influência de Singa/Porto Torrão se estenderia até ao grande povoado dos Perdigões – 16 ha – em Reguengos de Monsaraz, constituindo este último uma praça forte para defesa do Guadiana, à semelhança de San Blas, na margem oposta do Guadiana, também ele um grande povoado dependente de La Pijotilla, aparecendo o rio como fronteira territorial).


Do ponto de vista da cultura material podemos identificar em Singa/Porto Torrão dois grandes períodos: o pré-campaniforme e o campaniforme. Das escavações efectuadas no fosso 1 foi recuperada cerâmica da segunda metade do IV milénio a.C., nomeadamente taças carenadas, tigelas e vasos tipo saco, característica do Neolítico Final. Nesta fase o prato está ausente. No fosso 2 a cerâmica encontrada é já dominada pelo prato (de borda simples ou espessado) e pelas taças, 50% composto por decorações brunidas internas, comuns a outras regiões do Alentejo e às Estremaduras portuguesa e espanhola.

Retrato de uma sociedade

Sabemos hoje, pela abundância de ossos de suídeos nos estratos pré-campaniformes, que a suinicultura terá sido uma das mais importantes actividades económicas de Singa desde a fundação do povoado, algures na segunda metade do IV milénio a.C. A este facto não seria estranha a existência na região de uma floresta constituída essencialmente pela espécie Quercus (azinheira, sobreiro e carvalho-português), como vimos em relação ao Monte da Tumba, que permitia disponibilizar para estes animais uma alimentação à base de bolota, a exemplo do que ainda acontece hoje em dia, nos animais criados em regime aberto, nos montados. Estamos, afinal, em presença de uma prática que se reproduziria durante milhares de anos até ao século passado (os mais velhos ainda recordam as incontáveis varas de porcos que enxameavam os caminhos, vindos de todos os pontos do Alentejo para a feira de Ferreira).

O boi, a ovelha e a cabra estão também presentes, mais o primeiro que os segundos no início do povoado, permitindo-nos supor que, nesta fase, a pecuária teria uma grande importância económica para uma população que se dividiria entre duas actividades distintas mas complementares: a agricultura (cerealicultura e horticultura) e a criação de gado/suinicultura. A caça seria abundante nas florestas e nas planícies vizinhas (o auroque, o veado e o javali eram as presas mais importantes), mas as actividades cinegéticas só ganhariam um peso acrescido durante o período campaniforme, onde terão suplantado a criação de gado.

Os bivalves sempre fizeram parte da dieta alimentar, pois nos 1000 anos de vida de Singa/Porto Torrão estão presentes desde os momentos mais recuados aos momentos mais recentes. Encontramos profusão de conchas de mexilhão, lapa e vieira (espécies marinhas) e de amêijoa e navalha (espécies estuarinas). Não nos custa admitir que o peixe, nas suas várias espécies, também fizessem parte da dieta alimentar dos habitantes de Singa. Se tivermos em conta de que o mar e o estuário do Sado se encontram a cerca de 60 km de distância, então melhor poderemos avaliar a importância do povoado e a sua capacidade de coordenar uma vasta gama de actividades económicas e um conjunto variegado de populações.

Do que sabemos até ao momento as casas dispunham de planta circular, e apresentavam pavimento constituído por caliça bem calcada, com 2 a 3 cm de espessura. As fundações seriam de pedra calcária – também usada para erguer muros e divisórias – e as paredes de taipa ou adobe, como o são ainda hoje as paredes de muitos montes alentejanos, perpetuando técnicas de construção milenares e que muitos, na sua ignorância, atribuem a uma pretensa “herança” árabe (no Monte da Tumba foi identificada uma habitação de planta circular, com 4500 anos, construída com pedras na base e adobe na parte superior, formando cúpula. As habitações de Singa, contemporâneas das do Monte da Tumba, reproduziriam um modelo comum de construção).

Se seguirmos as pistas que a arqueologia nos deixa, verificamos que em Singa há dois tempos perfeitamente definidos. No primeiro, com uma duração de 600 a 700 anos, Singa afirma-se como o centro económico, religioso e político de uma vasto território, que teria duas fronteiras naturais: a ocidente o Sado, a oriente o Guadiana. E todo esse território seria pontilhado de povoados que lhe estariam subordinados. É esse o modelo que encontramos em La Pijotilla.

Neste período pré-campaniforme coexistem no povoado duas grandes actividades económicas, a agricultura e a pastorícia/criação de gado. O porco está omnipresente, lado a lado com o boi e a ovelha. A caça é uma realidade do dia a dia, mas apenas uma actividade complementar. A cultura material de Singa não conhece grandes alterações durante estes seis ou sete séculos, mas nestes aspectos não difere dos restantes povoados do Sudoeste peninsular. As populações do Alentejo, como já tinham demonstrado aquando da manutenção dos concheiros do Vale do Sado, demonstravam um conservadorismo que se repercutiria ao longo da História. As velhas tradições e os ancestrais modos de vida eram então sagrados, como o são ainda hoje para a maioria das populações do Alentejo.

Gente que viaja pelo mar

Algures na primeira metade do III milénio a.C., contudo, o mundo que gerações de homens e mulheres tinham construído em Singa sofreria uma ruptura, aparecendo-nos a cerâmica campaniforme como a componente mais visível de uma profunda transformação cultural, social e política, e que, abarcando todo o continente, constituiria um fenómeno sem paralelo na Pré-História europeia.

O vaso campaniforme, uma obra-prima dos artesãos do Calcolítico, não tem rival na qualidade e na beleza entre a cerâmica que a olaria pré-histórica produziu. Em forma de sino invertido, as suas superfícies são ondeantes e a decoração dá origem a padrões belos e harmoniosos que preenchem a superfície externa dos diversos recipientes (vasos, caçoilas e taças). A origem do Campaniforme continua a ser um mistério. Cem anos de calorosas discussões entre os arqueólogos pouco nos deram. Se inicialmente se atribuiu à Estremadura portuguesa o seu local de origem, investigações posteriores, com recurso ao C14, estabeleceram a foz do Reno como berço do Campaniforme, a partir da evolução da cerâmica cordada local. E terá sido por mar que os vasos campaniformes chegaram à Estremadura portuguesa (remontavam ao megalitismo os caminhos marítimos entre a Bretanha e o litoral português).

Excluída há muito, pelo ridículo, a teoria de um «povo campaniforme», invasor e conquistador, fica no entanto clara a existência de pequenos grupos (talvez famílias) que viajavam por mar e com elas traziam a nova arte. Nos riquíssimos povoados da Baixa Estremadura (na cercanias de Lisboa e Setúbal) encontramos as cerâmicas campaniformes coexistindo com as cerâmicas com decoração em «folha de acácia». E no povoado de Leceia (Oeiras), fortificado, foram encontradas duas cabanas no exterior das muralhas. Contemporâneo da população que vivia dentro das muralhas e quase desconhecia o Campaniforme, o pequeno grupo humano que habitava as duas cabanas, pelo contrário, só conhecia a cerâmica campaniforme, numa clara demonstração da existência de «grupos campaniformes». Não nos custa admitir ter sido este o modelo de difusão da nova cultura no Ocidente e no Sudoeste peninsulares.

Ao Algarve, estranhamente, o Campaniforme nunca chegou, e no Alentejo a sua presença é rara, resumindo-se a algumas peças isoladas. Singa/Porto Torrão constitui, neste campo, um caso à parte, pois a cerâmica campaniforme está omnipresente, nas suas diversas manifestações, e o povoado nada fica a dever aos povoados da Baixa Estremadura, região onde a profusão e a originalidade dos achados têm atraído a atenção de todos quantos procuram as raízes deste fenómeno. Mesmo a cerâmica com decoração cordada, que como vimos anteriormente terá tido origem na foz do Reno e que é a mais antigas das manifestações campaniformes, está presente em Singa, pois nas primeiras escavações foi descoberto um vaso com esta decoração, muito frequente no Noroeste da Europa mas muito raro na Península Ibérica (em Portugal apenas se conhecem dois exemplares, sendo o segundo proveniente do Castelo Velho de Freixo de Numão, junto ao Douro).

Os excelentes oleiros de Singa

O fenómeno campaniforme alcançou Singa na primeira metade do III milénio AC, e terá sido contemporâneo das primeiras manifestações do Campaniforme na Península Ibérica, exactamente na Baixa Estremadura (estuários do Tejo e do Sado), onde terão chegado, como vimos, por via marítima, provavelmente da Bretanha. As datações de C14 atribuem mesmo à cerâmica campaniforme presente em Singa uma antiguidade nunca documentada noutros lugares da Península Ibérica (2823-2658 a.C.).

Se se levar em conta que a cerâmica campaniforme de Singa foi toda ela produzida com argila local (testes realizados assim o comprovaram), então estamos perante o mistério de saber como chegou a Singa/Porto Torrão esta nova técnica, e em que circunstâncias grupos ou populações vindos do Norte da Europa se internaram no Alentejo para, subindo o Sado, e viajando depois por terra, alcançarem Singa e aí se instalarem.

O exemplo de Leceia deixa-nos algumas pistas interessantes para compreender a chegada do fenómeno (podendo atribuí-lo a grupos exógenos), mas Leceia era um pequeno povoado e Singa um colosso, com muitos milhares de habitantes. E como veremos mais à frente esses grupos com cultura campaniforme acabariam por ganhar preponderância, alterando a velha ordem instituída. A introdução da cerâmica campaniforme seria apenas a ponta de um imenso iceberg.

Na escavação de 1982, realizada a cerca de 50 m a Sul do centro geométrico do povoado, foram feitos vários cortes, que definiram claramente três estratos a partir da superfície (1, 2 e 3) e que nos permitiram reencontrar, pela primeira vez em milhares de anos, a História de Singa. No estrato 2 encontramos a cerâmica campaniforme, numa zona bem definida e demarcada, cerâmica com decoração a pontilhado, característica das fases mais antigas do Campaniforme. À medida que nos afastamos do centro do povoado a cerâmica campaniforme cede lugar às cerâmicas características dos povoados calcolíticos do Sudoeste (taças carenadas e taças e pratos de bordo espessado).

Terra de cavalos e cavaleiros

É na zona central de Singa, com cerca de 200 m de diâmetro, localizada em torno de uma pequena elevação, num local privilegiado, que na escavação de 1982 se acharam quase todos os achados superficiais de cerâmica campaniforme. Os vestígios arqueológicos indicam que o Campaniforme produziu em Singa uma profunda transformação, que abarca as esferas cultural, económica, política e social. A caça, que durante 700 anos fora apenas uma actividade complementar, ganha grande preponderância, com especial incidência nas espécies de grande porte (veado, javali e auroque).

A análise osteológica permitiu determinar nesta fase uma tendência para o abate de animais adultos, tanto domésticos como selvagens, sendo que neste último caso se verifica a preocupação de manter um equilíbrio nas populações animais (provavelmente as primeiras manifestações ecológicas que tiveram lugar em território nacional). Os suídeos domésticos eram abatidos com 1,5 a 2 anos de idade. Dos bovídeos e ovicaprídeos havia a preocupação de abater apenas animais adultos, o que sugere o seu aproveitamento para outros fins que não exclusivamente a produção de carne, ou seja, para a produção de leite. Os bovídeos seriam igualmente utilizados na tracção de arados e carros.

Uma das maiores singularidades do período campaniforme de Singa/Porto Torrão prende com o facto de o cavalo, antes fracamente representado no povoado, aumentar o seu número de uma forma significativa. Segundo os dados arqueológicos a percentagem de ossos de cavalo excede, em Singa, as percentagens dos restantes povoados calcolíticos da Península Ibérica. Singa é na época campaniforme uma terra de cavalos e de cavaleiros.

É bem possível que estejamos na presença de uma elite guerreira, que fazia da caça a sua actividade, um pouco a exemplo dos senhores feudais da Idade Média, e segundo o arqueólogo José M. Arnaud, uma elite guerreira que se teria desenvolvido localmente, pois há uma continuidade de ocupação de Singa entre as fases pré-campaniforme e campaniforme, com uma perpetuação da cultura material da primeira fase.

Contudo ficam muitas respostas por dar. Mesmo que estejamos perante uma afirmação das elites locais, teria havido um grupo portador da cultura campaniforme que teria transmitido as novas técnicas e os novos valores. O significativo conjunto de pesos de tear encontrados no fosso 2 (estão ausentes no fosso 1) dá-nos conta da importância da tecelagem no povoado. Não deixa de ser significativo que neste fosso tenham sido descobertos, lado a lado, diferentes formatos de pesos de tear, implicando a existência paralela de duas diferentes técnicas de tecelagem… a mais recente introduzida aquando do Campaniforme.

A riqueza da cultura campaniforme já posta a descoberto em Singa, seguramente apenas uma pequena parte do muito que ainda há por descobrir, só se poderia ter imposto com a instalação de um grupo portador desta cultura. É bem possível que as elites locais se tenham deixado seduzir por toda a panóplia campaniforme, vendo na diferenciação cultural uma forma de afirmar o seu poder.

A panóplia campaniforme é constituída desde logo pela cerâmica (que alguns dizem estar ligada ao consumo ritual de algum tipo de bebida, provavelmente alcoólica), pelos elementos metálicos (adornos e jóias de ouro, que permitiam a diferenciação social), pelas armas (punhais e pontas de lança em cobre e pontas de flecha em sílex), pelos braçais de arqueiro (designação de pequenas placas rectangulares de pedra ou osso, que se crê seriam atadas à face interna do antebraço e que teriam a função de o proteger do atrito da corda do arco). Nota: a prática ritualizada do tiro com arco, na guerra como na caça, distinguia a elite do resto da população.

Uma sociedade estratificada

Rompendo com a anterior organização social gentílica, onde em teoria todos dispunham de direitos iguais, sem uma casta guerreira que sobressaísse da comunidade, o mundo campaniforme é a primeira tentativa de estratificação social que conhecemos no Ocidente, e esse talvez tenha sido o segredo do seu sucesso e da sua rápida generalização, respondendo aos anseios de pequenos grupos e famílias que, por razões diversas, se tinham afirmado no seio da sociedade mas não tinham como diferenciar-se.


Em Singa, tudo o indica, o Campaniforme é o advento de uma nova sociedade, mais injusta talvez, mas um sedutor mundo de guerreiros e de heróis. O homem comum lavra os campos e guarda o gado, os senhores e os guerreiros combatem e caçam. O cavalo, o arco, o braçal de arqueiro, as armas de cobre, as jóias e os botões de perfuração em “V” são os elementos diferenciadores da elite guerreira, lado a lado com a cerâmica campaniforme, que os hábeis oleiros de Singa depressa assimilarão e reproduzirão. A cerâmica, tudo o indica, reproduziria ela própria nas suas decorações os padrões dos saios e das capas de lã, identificativos de cada família, à semelhança dos “kilts” escoceses e dos saios dos guerreiros galaico-lusitanos. Uma das teorias mais recentes diz-nos que seria a mulher, mais que o homem, a “grande”viajante” da Europa, estabelecendo através de intercâmbios matrimoniais alianças e pactos políticos entre os líderes dos grupos calcolíticos europeus, mulheres que – tal como Penélope, esposa de Ulisses e rainha de Ítaca – seriam tecelãs, transmitindo de mães a filhas os padrões familiares.

Dominando uma constelação de pequenos povoados, controlando os fluxos comerciais de um vasto território, abastecendo a Estremadura com o cobre de Aljustrel que, transportado pelo Sado, era depois manufacturado nos povoados campaniformes situados na foz do rio, a História de Singa foi durante mais de mil anos uma história de sucesso.

A morte de um gigante

Os povoados do Sudoeste e do Ocidente peninsulares conheceram, no final do Calcolítico (cerca de 2000 a.C.), um abandono cujas razões ainda hoje divide os arqueólogos. As sociedades fragmentam-se em pequenas células, recupera-se a densa malha de povoamento neolítica e implementa-se uma colonização interna dos territórios, seguramente seguindo tendências de mudança social, que deixam já antever a Idade do Bronze.

Não há um modelo comum para ajudar a explicar os abandonos, parciais ou totais, do povoado. A pressão demográfica, levando ao esgotamento dos recursos, poderia explicar o abandono ou a segmentação populacional. Contradições internas dentro da própria sociedade, onde um segmento guerreiro em gestação começava a deixar pouca liberdade aos restantes elementos, a ambição de alguns chefes, o espírito pioneiro de um grupo que, instalado com sucesso num novo povoado, levava à replicação do exemplo. Muitas teorias se podem adiantar para tentar explicar um fenómeno de difícil explicação.

Singa/Porto Torrão não lhe escapou. Numa primeira fase o povoado ter-se-ia contraído, perdendo dimensão e ascendente sobre os povoados que durante tantos séculos dominara. Numa segunda fase é possível que as populações tenham deslocalizado o povoado para a Colina do Castelo, onde hoje se encontra o cemitério, que oferecia melhores condições de defesa. Mas no plano simbólico Singa continuava a existir, e o nome ter-se-á perpetuado. O espaço ocupado durante mais de 1000 anos era um lugar de culto, o local de residência dos antepassados, essencial para as populações de um vasto território que, ligadas entre si por laços de sangue, procuravam no espaço sagrado a sua identidade.

Singa não voltará a conhecer a sua antiga glória, e talvez por isso se enconda hoje de nós sob as lajes frias do cemitério, não nos deixando saber como viviam aqueles que apenas herdaram a memória de um tempo de grandeza. Mas nisso Singa não é diferente dos restantes povoados do Alentejo e da Estremadura. Durante o Bronze Inicial e o Bronze Pleno (aprox. 2000-1300 a.C.) o mundo dos vivos desaparece da paisagem, e só o mundo dos mortos nos surge. Tudo o que sabemos destas populações é o que “lemos” nas suas necrópoles.

Os herdeiros de Singa

Sabemos que a Idade do Bronze chegará ao Alentejo com dois séculos de atraso em relação ao Ocidente Europeu. Desta vez o conservadorismo das populações não será o principal responsável por este abraçar tardio das novas tecnologias, antes a dificuldade em obter estanho nas minas do Norte e do Centro de Portugal, pelo facto de as redes de abastecimento ainda não se encontrarem organizadas. Mas rapidamente a Estremadura se assumirá como a «placa giratória», levando o cobre do Alentejo para o Norte e trazendo o estanho da Beira Interior e do Norte de Portugal para abastecer todo o Sudoeste. Depois a Estremadura tornar-se-ia a grande plataforma onde a Europa do Norte e o Mediterrâneo se encontravam para trocar os seus produtos... mas essas são outras realidades e outras histórias, que só pontualmente nos interessam.

As populações que habitavam Singa, já não nas margens do Vale d’Ouro mas na Colina do Castelo, não diferiam das restantes populações do Bronze Pleno que habitavam o Alentejo. Viviam essencialmente da agro-pastorícia, e dispunham de uma organização social não muito diferente da vigente no Campaniforme, com a existência de uma aristocracia guerreira no seio dessas comunidades que, dirigidas por chefes locais, se mantinham independentes entre si.


Chegaram até nós tampas sepulcrais de grande beleza, representando, gravados ou em baixo relevo, uma figura central vagamente ancoriforme, que pela presença constante se pode associar a um símbolo de poder. Surge rodeada por representações de armas (espada, machado e arco). As espadas, primorosamente desenhadas, obedecem a um modelo único, com uma folha larga e triangular, grossa, encabamento arredondado, com punhal cilíndrico, rematado por pomos torneados ou esferoidais. A sua forte representação no Bronze do Sudoeste diz-nos da importância do segmento guerreiro no seio da sociedade. Atendendo à larga distribuição destas tampas sepulcrais, desde Santa Vitória a Santiago do Cacém, seguramente Singa, pela sua proximidade, não estaria excluída desta corrente cultural. Talvez um dia tenhamos também oportunidade de descobrir, no nosso concelho, uma destas tampas sepulcrais que honravam os chefes e os heróis de uma sociedade guerreira.

Entre o Bronze Pleno e o Bronze Final, e depois de uma primeira fase em que assistimos à pulverização do povoamento, podemos testemunhar a afirmação de novos centros de poder no Baixo Alentejo, que parece continuar a tradição de “habitat” concentrado de Singa/Porto Torrão, em oposição ao que conhecemos no Noroeste ou na Beira-Alta. O mais próximo de Singa, e seu sucessor, é o povoado conhecido por Outeiro do Circo, que com os seus 16 ha e rodeado por uma poderosa cintura de muralhas era, na escala da Idade do Bronze, um povoado de grandes dimensões. Situado entre Beringel e Mombeja, a escassas duas léguas de Singa, exerceria amplo controlo sobre um extenso território e Singa, assim como uma miríade de outros povoados, estar-lhe-ia subordinada.

Dominando uma extensíssima região agrícola (os ricos barros de Beja) a aristocracia guerreira do Outeiro do Circo tirava a sua riqueza, para além da milenar economia agro-pastoril, do controlo e exploração das grandes jazidas cupríferas alentejanas. Recuperava assim a matriz económica, política e social de Singa, um milénio depois.

Pouco sabemos sobre o povoado do Outeiro do Circo (os resultados das escavações de 2008 serão em breve publicados), mas acreditamos que as pedras derrubadas (e vergonhosamente roubadas!) nos irão ajudar a compreender uma boa parte da História de Singa/Ferreira do Alentejo, mais que não seja para melhor conhecermos as sociedades guerreiras da Idade do Bronze, cuja mística recua aos tempos do Campaniforme, quando os orgulhosos cavaleiros de Singa patrulhavam os caminhos do Baixo Alentejo.

BIBLIOGRAFIA (A completar posteriormente...)


CARDOSO, J. L. (2007) - Pré-História de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo.

FABIÃO, C. (1997) – O passado proto-histórico e romano. In MATTOSO, J., dir. – História de Portugal, 1: Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa.

ZILHÃO, J. (1998) – A passagem do Mesolítico ao Neolítico na costa do Alentejo. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 1:1, p. 27-44.