segunda-feira, 1 de março de 2010

O povoado de Porto Torrão (Ferreira do Alentejo): Vida e morte de um gigante do Calcolítico


JOSÉ GALAZAK

Prefácio

Depois da derrota dos Godos na Batalha do Rio Guadalete, na actual Andaluzia, em 711, as forças muçulmanas avançam sem pressa pela velha Hispânia romana, há três séculos governada por duques e condes de raça germânica. As cidades caem uma a uma. Segundo a lenda Roderico, o último rei godo a governar na Península Ibérica, foge para Viseu e aí morre, a lamber as feridas. Enfim vencedores, os Árabes não demoram a instalar-se. A terra é sua e rebaptizam-na. À Peninsula Ibérica darão o nome de Al-Andalus, e o Andalus será dividido em quatro grandes áreas geográficas. Ao Ocidente, ao território hoje português, a que os Gregos tinham chamado Ophiussa e os Romanos Lusitânia, chamariam os Árabes Al-Gharb al-Andalus. O Alentejo dormia na altura à sombra deste nome, pois não tinha nenhum outro que o diferenciasse.

Foram os netos de Vímara Peres e dos seus companheiros, reunidos em torno de Afonso Henriques, quem baptizou as imensas planícies do Sul. O corónimo «Terras d’Além Tejo» nasceu do olhar sobranceiro dos homens do Norte sobre as terras e os homens do Sul. Era o imenso território que ficava além das fronteiras de Portugal, de um novo reino que, nascido entre o Minho e o Mondego, esforçadamente abraçava as terras meridionais. E sempre nos foi dito que nós, homens e mulheres do Alentejo, viemos do Norte, com os conquistadores, para colonizar as terras arrancadas pela espada aos Mouros. Mas essa é uma grosseira mentira e uma ofensa à nossa memória colectiva!

Esta terra guarda as nossas mais profundas raízes. Fomos nós que fizemos as pinturas e as gravuras do Escoural. Fomos nós que construímos Almendres e pusemos de pé mais de quatrocentos menires por todo o Alentejo. Fomos nós que amontoámos os concheiros do Vale do Sado, no distante Mesolítico. Fomos nós que trabalhámos os campos, durante incontáveis gerações. Fomos nós que construímos o grande povoado calcolítico de Singa/Porto Torrão, em Ferreira do Alentejo. Fomos nós que construímos os grandes povoados da Idade do Bronze na Serra d’ Ossa. Fomos nós que construímos a grande muralha pré-romana de Mértola, envolvendo uma cidade de 65ha, uma das três maiores da Península Ibérica no seu tempo. Fomos nós que gravámos as estelas com a escrita do Sudoeste em Ourique e Almodôvar. Foi contra nós e contra os nossos irmãos da Betúria que se bateram os Romanos nas guerras lusitanas, onde fomos capitaneados por Viriato (de acordo com as últimas teorias, que propõem uma nova leitura das fontes clássicas). Foi contra nós que os Romanos “semearam” por todo o Alentejo torres e fortins com guarnições militares (em Ferreira do Alentejo temos o recinto-torre de Casa Branca, de grandes dimensões). Foi entre nós que Augusto instalou os companheiros de Marco António, derrotados na Batalha de Áccio e povoadores da cidade de Pax Iulia.

Sempre aqui estivemos. Quando os Romanos nos conquistaram aqui ficámos, trabalhando nos grandes latifúndios, as villas que enxameavam os férteis campos do Alentejo. Assistimos à chegada dos Suevos, dos Alanos e dos Vândalos. E assistimos à queda da Suévia, o primeiro estado nascido em território português, quando Leovigildo, o rei godo, conquistou Braga, a capital dos Suevos e desterrou o seu último rei, Andeca, para um mosteiro de Beja. E quando os Árabes vieram, em 711, destruíndo com um sopro o dividido reino dos Godos, continuávamos aqui.

Esta é a nossa terra e o nosso mundo. E mesmo quando partimos, em busca de melhores condições de vida, nunca esquecemos o berço que nos viu nascer. E como poderíamos? Estamos ligados a este berço há milhares e milhares de anos. É uma corrente fortíssima, que nem o tempo nem a distância conseguem quebrar…

Este trabalho monográfico dedica-o o autor a todos os seus conterrâneos. O título do trabalho, identificando a nossa vila como SINGA, pretende repor a verdade histórica. Se a origem toponímica de Ferreira do Alentejo recua a uma pretensa resistência às invasões germânicas (facto nunca comprovado) a verdade é que o topónimo SINGA, desde sempre atribuído a Ferreira, pode recuar ao Neolítico Final, há mais de 5 mil anos, ao grande povoado hoje conhecido entre os arqueólogos por Porto Torrão, às portas da vila, sobre a ribeira de Vale d’ Ouro.

Com uma superfície calculada de aproximadamente 100 ha, foi durante muito tempo o maior de todos os povoados construídos em território português (a actual cidade de Évora, intramuros, dispõe de uma área exactamente igual) e durante mais de mil anos – muito mais tempo que toda a História de Portugal – terá sido o centro político, cultural e religioso do Baixo Alentejo. É francamente possível que o topónimo SINGA que nos chegou até hoje, nunca referenciado nas fontes clássicas (há apenas referência a uma única localidade romana, Serápia, algures na freguesia de Peroguarda) seja apenas o eco dessa glória distante, que os homens e as mulheres de Ferreira nunca deixaram cair no esquecimento. Só esse facto é merecedor da nossa profunda admiração.

E que nos seja perdoado esse “pecado” científico, mas neste despretensioso trabalho referir-nos-emos sempre ao sítio arqueológico de Porto Torrão como SINGA. Estaremos assim solidários com todos aqueles que pensam que Ferreira do Alentejo deveria retomar o seu antigo nome – SINGA – reclamando para a vila e para todos os que aqui nasceram a glória que o tempo quase apagou. Esse facto certamente reforçará o nosso orgulho e o nosso amor pela terra maravilhosa que nos viu nascer. E quem sabe se, recuperando o seu velho e glorioso topónimo, não recuperará também a nossa vila a sua antiga glória. Passo a passo se vence a estrada…


O início de uma longa caminhada

O Homem geneticamente moderno, o Homo sapiens sapiens, terá alcançado a Península Ibérica há cerca de 40 mil anos, cinco mil anos depois de ter partido do seu berço original no Médio Oriente, mas iria precisar de 10 mil anos para substituir de vez o Homem de Neandertal, a espécie que o precedera, pois há 30 mil anos ainda temos provas da existência deste último na gruta da Figueira Brava, na Serra da Arrábida, um dos seus últimos refúgios conhecidos. O Homo sapiens sapiens tornar-se-ia enfim o senhor absoluto de toda a Península Ibérica, como já o era além-Pirinéus.

O Alentejo foi assim lentamente ocupado por grupos de caçadores-recolectores, encontrando-se as provas mais antigas na gruta do Escoural, próximo de Montemor-o-Novo. Ocupadas por populações itinerantes ao longo de milhares de anos, as pinturas e gravuras, de estilos distintos, recuarão até há cerca de 18 mil anos, quando a Europa conhecia o último máximo glaciário (Würm).

A paisagem do Alentejo era então muito diferente daquela que hoje conhecemos. As árvores tinham recuado para refúgios seguros no Sul, longe da tundra e das moreias glaciárias que ocupavam boa parte do interior da Península Ibérica. Em toda a frente atlântica, muito mais extensa que a actual com a diminuição do nível médio das águas do mar, marcavam presença as dunas e as «landes» eternamente varridas pelos ventos do Norte, e nas terras afastadas do litoral dominavam as estepes frias, percorridas por manadas de cavalos e auroques, os mesmos que os caçadores do Escoural gravaram e pintaram.

Com o fim da Idade Glaciária e o recuo dos gelos para Norte, a floresta parte dos seus refúgios meridionais à conquista da Europa, e rapidamente o carvalho (quercus) se torna o rei das florestas temperadas europeias. Mas as oscilações climáticas foram sempre uma constante, e as árvores “caminhavam” para Norte e para Sul reflectindo os períodos de maior ou menor rigor climatérico. A azinheira chegou em períodos de calor a alcançar a Cantábria, pois aí sobrevive, ainda hoje, nos vales, em grandes rusticidade, sobrevivendo ao frio e à neve. O carvalho-português (cerquinho) nunca desapareceu do Alentejo, mantendo importantes manchas florestais (das maiores e mais belas do país!) na foz do Mira e na Serra do Cercal, a que deu o nome. E por toda a nossa região ainda sobrevivem, tantas vezes contra a vontade dos homens, as faias, os freixos, os salgueiros e os choupos, nas matas ribeirinhas ou em terrenos frescos, resquícios das velhas e ricas florestas que recobriam todo o Alentejo, e onde só as dunas terciárias do litoral, da foz do Sado até Sines, as afastavam, pois aí era o domínio do pinheiro, tal como ainda sucede hoje em dia.


O adensamento florestal do Alentejo, iniciado há cerca de 10 000 anos, depois do último período glaciário, obrigou as populações que habitavam o interior a procurar o litoral e a margem dos rios. É um fenómeno comprovado arqueologicamente em todo o ocidente peninsular. Na foz do Mira, nas praias de Sines, nos vales do Sado e do Muge, aqui resistiram e sobreviveram, durante milhares de anos, os homens que mais tarde haveriam de recolonizar o território que hoje designamos por Alentejo. O intrépido caçador de cavalos e auroques especializava-se agora nas artes da pesca e da recolha de bivalves.

Uma das mais vincadas características deste modo de vida são os denominados «concheiros» – verdadeiras colinas de cascas de moluscos acumulados ao longo de incontáveis gerações, tanto nas margens do Muge (ribeiro da margem esquerda do Tejo) como no Vale do Sado. Aqui os efeitos das marés chegavam muito para além do que é hoje Alcácer do Sal, nos concheiros de Arapouco, Amoreira, Vale de Romeiras, Cabeço do Pez e Cabeço do Rebolador, onde foram encontrados vértebras de corvina e raia, assim como dentes de dourada, pargo e choupa. Encontraram-se ainda dentes de um anequim, um tubarão de grandes dimensões, que pode atingir até quatro metros de comprimento.

O berbigão era, nos concheiros do Vale do Sado, o rei dos moluscos, seguido de perto pela lambujinha. A ostra, o búzio e o lingueirão estão também presentes. Dos mamíferos o veado e o javali encontram-se largamente representados, assim como o coelho e a lebre. O auroque e o cavalo, omnipresentes na época glaciar, segundo nos mostram as pinturas e as gravuras do Escoural, têm apenas uma presença residual.

O confronto de dois mundos

A chamada «Revolução Neolítica» (a domesticação dos cereais e dos animais) iniciada no Próximo Oriente, alcançou o nosso território por via marítima, cerca de 5500 a.C., quando pequenos grupos de colonos, vindos do Mediterrâneo e trazendo com eles a cerâmica cardial, se instalaram em Sagres e na Estremadura. Numa primeira fase o Alentejo terá ficado arredado deste primeiro «movimento civilizador», pois os pioneiros neolíticos terão dado preferência a ecossistemas em tudo semelhantes àqueles que deixavam para trás, e que o Barlavento algarvio e o Maciço Calcário Estremenho, onde se instalaram, reproduziam. Mas a difusão do chamado «pacote neolítico» (domesticação do trigo, assim como da ovelha, da cabra e do boi, que possibilitou que o antigo recolector se tornasse produtor dos bens indispensáveis à sua sobrevivência) terá sido muito rápida e as populações do litoral alentejano, entre Sines e a foz do Mira, cerca de 5000 a.C. já tinham absorvido integralmente as novas técnicas produtivas. A agricultura e a pastorícia davam os seus primeiros e tímidos passos no Alentejo.


A progressão das novas técnicas produtivas foi muito rápida por todo o litoral alentejano, e os colonos neolíticos, numa dezena de gerações, fizeram desaparecer as velhas actividades de caça e recolecção e o Homem tornou-se produtor dos seus próprios alimentos. No Vale do Sado, contudo, as populações que aí habitavam há milhares de anos, iriam resistir durante muitas mais gerações ao canto da sereia das populações neolíticas, e os dois últimos concheiros, com as suas populações mesolíticas (Amoreira e Cabeço do Pez) só seriam abandonados por volta de 4750 a.C.

Explorando ecossistemas muito ricos, perfeitamente integrados com o rio (então muito mais generoso do que hoje), conhecendo já sofisticadas formas de sedentarização, pescadores e marisqueiros especializados (tudo leva a crer que utilizassem redes de pesca para a captura da corvina, por exemplo, largamente representada no concheiro de Arapouco), a estas populações piscatórias a agricultura e a pastorícia nada diziam. O seu conservadorismo não resultava de qualquer dificuldade atávica em aceitar o progresso, mas da certeza de que o seu modo de vida não era inferior àquele que lhes propunham. E quando por fim aceitaram o inevitável e partiram, trocando o seu velho berço no vale do Sado por novos destinos nas terras do interior, estas antiquíssimas populações (os austeros antepassados dos homens e mulheres do Alentejo) iriam provar estar na vanguarda dos povos do seu tempo. A brilhante «cultura megalítica» que nos deixaram no Alentejo Central, única na Península Ibérica e das mais belas da Europa, imorredoiro monumento à sua tenacidade e à sua capacidade criativa e construtora, aí está para o comprovar.

As primeiras populações agro-pastoris

Dois caminhos distintos seguiram as populações que habitavam o vale do Sado: um ramo seguiu para Leste, para o Alentejo Central, onde a abundância de grandes pedras os levaria a construir complexas estruturas megalíticas, desde Montemor até Reguengos de Monsaraz, só se detendo diante da fronteira natural do Guadiana. Segundo as últimas teorias terão sido estes homens e estas mulheres do Alentejo Central os pioneiros da construção megalítica e os difusores das várias expressões que iremos encontrar posteriormente, quer na Europa Atlântica, quer no mundo mediterrânico. Mas não é este ramo de povos que nos interessa por agora, pois o concelho de Ferreira não viveu o milagre megalítico.

Um segundo ramo das populações do Vale do Sado, já neolitizadas, seguiu para Sul, subindo o curso do rio, onde certamente se teriam cruzado com pequenos grupos que, a partir do litoral, começavam a ocupar o interior. São grupos de pastores e agricultores, que procuram pastos para os seus rebanhos e terrenos férteis para cultivar. Serão estes os antepassados dos homens e mulheres do Baixo Alentejo, o fundo populacional sobre o qual se sobreporão, numa complexa malha humana, todos os que depois puxaram da espada nesta terra, para a reclamar para si, Celtas, Romanos, Germanos ou Árabes. Uns vinham e ficavam, unindo-se aos velhos ocupantes; outros vinham, no fluxo da conquista, dominavam e punham a trabalhar para si as velhas populações, e no refluxo partiam, quando os ventos da guerra mudavam.

Desconhecemos praticamente tudo sobre as primeiras sociedades agro-pastoris que evoluíram no Baixo Alentejo. O tempo foi avaro para nós e da sua cultura material nada nos chegou, pois a terra acabaria reclamando para si quase tudo o que dera ao Homem, e o que não se perdeu encontra-se hoje sepultado, longe dos nossos olhos e da nossa curiosidade.


Ao invés, talvez não seja difícil para nós traçar alguns dos hipotéticos itinerários desses nossos antepassados que recolonizaram o Baixo Alentejo a partir do Vale do Sado, subindo o rio. Os primeiros grupos terão acompanhado o curso do Xarrama até à sua nascente, e ter-se-ão eventualmente “espalhado” pelo concelho de Viana do Alentejo, onde as terras eram férteis e a água abundante. Outros grupos terão eventualmente optado por seguir a ribeira de Odivelas, ocupando os concelhos de Ferreira do Alentejo e Alvito, numa primeira fase, progredindo depois para os actuais concelhos da Vidigueira, Cuba e Beja, ocupando a maior mancha de solos barrosos do Alentejo, de superior qualidade agrícola (solos de classe A ou B).

Não devemos cair no erro de imaginar o mundo destes nossos distantes antepassados como um mundo idílico, uma Idade de Ouro onde a paz dominava a relação entre os distintos grupos humanos que povoavam o Alentejo. Longe disso. A violência guerreira, imanente ao ser social, está omnipresente nas sociedades sem Estado, e os antigos caçadores transformam-se a pouco e pouco nos guerreiros, detentores do monopólio da capacidade militar e da violência organizada. A guerra entre várias sociedades humanas tornar-se-á mesmo necessária, para que o grupo dos guerreiros, órgão especializado, não se transforme num órgão separado do corpo social, hostilizando-o e tomando o poder político. Na verdade a guerra, a violência organizada contra grupos exteriores, era a forma de a sociedade prevenir a violência contra si mesma, adiando o inevitável: a sua divisão entre os grupos que detêm o poder e a capacidade militar (os guerreiros) e o resto da sociedade (os súbditos).

A consolidação do sistema agro-pastoril no Baixo Alentejo decorreu durante todo o IV milénio a.C. A introdução de melhorias tecnológicas no sistema produtivo, de que ressalta o aproveitamento da força de tracção animal para a lavoura de solos pesados, terá conduzido a um significativo aumento demográfico. O desmatamento da região dos “barros de Beja” (por cortes e queimadas) e a preparação dos campos agrícolas e de pastoreio terá tido um grande incremento por esta altura. As populações, fixando-se, ocuparam os territórios e consideraram-nos sua propriedade. O estado de guerra em que viviam estas populações (todos contra todos, que só as alianças pontuais mitigavam) conduz à fortificação dos povoados. Na feliz definição de A. Leroi-Gourhan «O agricultor constrói o mundo em círculos concêntricos em torno do seu celeiro».

Um povoado fortificado no Torrão

O mais antigo e, simultaneamente, mais exótico dos povoados fortificados do Baixo Alentejo foi construído num cabeço, sobre o rio Xarrama, dominando solos de grande aptidão agrícola. Já enquadrado no grupo das comunidades agro-metalúrgicas (Calcolítico), o povoado do Monte da Tumba, no Torrão, é singular a vários níveis. Na fase I de ocupação (fins do IV milénio a.C.) foi construída uma primeira muralha, que numa fase posterior (fase 1B) se complexifica com a construção de grandes torres semicirculares.

De pequena dimensão, pouco mais que uma «quinta» fortificada, não acomodando mais que algumas dezenas de almas, o Monte da Tumba denuncia um corpo social com uma estrutura e uma organização sólidas, apto a planear e a executar estruturas arquitectónicas de grande complexidade para defender os seus excedentes alimentares, uma grande riqueza cobiçada por populações rivais. E serão essas mesmas populações que finalmente a destruirão pelo fogo, arrasando as suas poderosas muralhas. Voltará a erguer-se, alcançará mesmo uma fase adiantada do Calcolítico, mas não voltará a encontrar a sua antiga glória.

O estudo antracológico e polínico deste povoado permite-nos compreender o que seria a floresta do Sul do Alentejo no III milénio a.C. Estão presentes o pinheiro-manso e a azinheira, assim como várias outras espécies de pinheiro, o zambujeiro e várias espécies de carvalhos. Estão ainda presentes o choupo, o salgueiro e o freixo. A maior singularidade era a de, por esta altura, o carvalho de folha semi-caducifólia fazer parte da floresta do Alentejo, lado a lado com o carvalho de folha perene (azinheira e sobreiro), denunciando um ambiente mesomediterrânico, com Verões mais suaves do que aqueles que hoje conhecemos. Os bosques mistos de carvalhos estender-se-iam então por boa parte do Alentejo, longe da realidade que hoje conhecemos, havendo seguramente muitas regiões onde os carvalhos de folha semi-caducifólia seriam dominantes, como acontece ainda hoje na foz do rio Mira e na Serra do Cercal. Deveria ser um espectáculo deslumbrante, pois as semi-caducifólias, com o seu hábito marcescente, deixam murchar e secar a folhagem no Outono, retendo-a presa aos ramos até à Primavera seguinte. São as únicas no nosso país que o fazem, sobressaindo na paisagem pelo tom dourado das suas copas.

Singa – Uma “cidade” rodeada de fossos

Não sabemos quando se terão estabelecido as primeiras populações nas margens da ribeira de Vale d’Ouro, a escassos 2 km de Ferreira do Alentejo. Os primeiros a chegar terão sido os pastores transumantes, mas a qualidade do solo cedo terá atraído agricultores, que terão começado por abrir clareiras nas cerradas florestas, o princípio do desmatamento e da “libertação” dos barros de Beja para a produção cerealífera. E seria nas margens do Vale d’Ouro, às Portas de Ferreira do Alentejo, que se estruturaria, durante o Calcolítico, o maior de todos os povoados do território português e um dos maiores da Península Ibérica, o povoado que acreditamos ter tido o nome de Singa, mas que seria “rebaptizado” como Porto Torrão, por ter sido este o local da sua descoberta, e assim passando a ser conhecido nos meios científicos.

José Morais Arnaud, o arqueólogo que o descobriu e aí realizou as primeiras escavações, atribuiu-lhe uma área de cerca de 100 ha (1 km de diâmetro). Se tivermos em conta que, no período árabe, Lisboa tinha 16 ha e Silves 13 ha (contra 12 ha de Coimbra, a capital do pequeno reino de Afonso Henriques), e de que Beja, a maior de todas as cidades do ocidente peninsular – então inteiramente rodeada de fortes muralhas, que a Reconquista destruiria – tinha uma área de 20 ha, então melhor poderemos avaliar o “gigantismo” do povoado calcolítico de Singa/Porto Torrão.

À semelhança dos outros três grandes povoados do Sudoeste peninsular – Pijotilla, Valencina de la Concepción e Marroquiés de Bajo – também Singa/Porto Torrão não dispunha de muralhas. Mas a inexistência de muralhas não significa falta de preocupações defensivas dos seus habitantes. O permanente estado de guerra em que se encontravam mergulhados os diversos grupos humanos no Neolítico Final/Calcolítico Inicial (não sendo de excluir a competição entre pastores nómadas, com os seus círculos familiares alargados, e agricultores sedentarizados, de que o Monte da Tumba nos parece dar um eloquente testemunho) terá levado à construção de sistemas defensivos para defesa das populações e preservação dos excedentes agrícolas. Os povoados foram rodeados por um ou mais anéis de muralhas, ou por complexos sistemas de fossos. Num e noutro caso a função era a mesma: dificultar ou impedir o assalto e a conquista do povoado.

Singa, ao que tudo indica, nunca terá conhecido muralhas (pelo menos no seu perímetro exterior) e os seus habitantes terão desde muito cedo (desde o Neolítico Final, cerca de 3200 a.C.) optado pela construção de um sistema defensivo baseado em fossos protectores, ao ponto de hoje se poder definir o povoado como um recinto de fossos. Nas escavações levadas a cabo em 2002, e conduzidas pelo arqueólogo António Valera, foram descobertos dois fossos sub-paralelos, com cerca de 3 m de profundidade e entre 4 a 6 m de largura, sendo um deles datado do Neolítico Final (o que atesta grande antiguidade na ocupação do território) e outro do Calcolítico. Uma distância de 8 m separa os dois fossos.

Não sabemos se existiriam ou não outras linhas de fossos, tal como não sabemos se os fossos seriam acompanhados de muralhas ou paliçadas, a exemplo do que tem sido registado noutros povoados da mesma época. Admite-se hoje que as paliçadas terão constituído as primeiras formas de delimitação de espaços habitacionais, tendo-lhes sucedido os fossos e, mais tarde, as muralhas. Para além das suas funcionalidades defensivas, admite-se que os fossos pudessem ter igualmente outras funcionalidades, tais como drenagem das águas pluviais e gestão dos recursos hídricos para apoio das actividades agrícolas, nomeadamente relacionadas com a horticultura.

Ainda não existem dados relativamente à planta e à dimensão de Singa. Nos povoados conhecidos parece haver uma tendência geral para a circularidade, pois o círculo é a fórmula geométrica mais comum no mundo natural, e dominante na arquitectura no período em que Singa se afirmou. Há seguramente uma carga simbólica no círculo, que nos escapa mas que se encontra ligada ao sagrado. Nos povoados do Sudoeste, quando existem vários fossos, parece haver uma tendência para a disposição concêntrica. No caso do povoado dos Perdigões os fossos exteriores, que têm nove metros de largo, descrevem uma circunferência perfeita, só interrompida – sem nunca perder a forma circular – para englobar a área da necrópole.

1000 anos de domínio e poder

As populações do Neolítico Final/Calcolítico Antigo aglomeravam-se em pequenos povoados, que raramente excediam 1 ha, eventualmente restritos a um único grupo familiar. A proliferação de povoados teria resultado de um processo de “colonização” interna do Alentejo, quando a sobrepopulação ameaçava a sobrevivência do povoado original e alguns dos casais mais jovens se viam constrangidos a partir e a fundar novos povoados.

Desconhecemos por enquanto as origens de Singa/Porto Torrão. Não sabemos se seria inicialmente um povoado de pequena dimensão, como centenas de outros que pontilhavam o Alentejo, ou se a localização privilegiada e a abundância de água lhe terá permitido desde logo estabelecer primazia sobre os restantes povoados da região. É bem possível que tenha constituído um dos povoados nucleares no Neolítico Final, numa região que, grosso modo, abrangeria o actual concelho de Ferreira do Alentejo. Teria havido uma expansão inicial do povoamento, a partir de Singa, depois seguida de uma contracção, do que resultaria a concentração dos efectivos demográficos no povoado original? É bem possível. Quando o fizeram e em que circunstâncias políticas e sociais se realizou esse movimento gregário que juntou em Singa milhares de habitantes, não o sabemos. O que é facto é que, pela necessidade de defesa das populações, Singa terá emergido como centro decisor de um vasto território, congregando eventualmente estruturas políticas, comerciais e religiosas. É pelo menos este o modelo que pré-historiadores e arqueólogos admitem para os grandes povoados do Sudoeste peninsular.

Durante mais de mil anos dezenas de gerações de homens e mulheres nasceram, viveram e morreram em Singa. Os seus contingentes armados, constituídos por muitas centenas de lanceiros, terão permitido estender a sua influência (eventualmente domínio político e militar) até muito longe, controlando a bacia terciária do Sado, os barros de Beja e talvez o mais importante, as inesgotáveis reservas cupríferas do Baixo Alentejo, sendo os fornecedores de cobre da Estremadura, região rica e desenvolvida mas onde este metal não existia (Victor Hurtado, arqueólogo espanhol, defende mesmo que a influência de Singa/Porto Torrão se estenderia até ao grande povoado dos Perdigões – 16 ha – em Reguengos de Monsaraz, constituindo este último uma praça forte para defesa do Guadiana, à semelhança de San Blas, na margem oposta do Guadiana, também ele um grande povoado dependente de La Pijotilla, aparecendo o rio como fronteira territorial).


Do ponto de vista da cultura material podemos identificar em Singa/Porto Torrão dois grandes períodos: o pré-campaniforme e o campaniforme. Das escavações efectuadas no fosso 1 foi recuperada cerâmica da segunda metade do IV milénio a.C., nomeadamente taças carenadas, tigelas e vasos tipo saco, característica do Neolítico Final. Nesta fase o prato está ausente. No fosso 2 a cerâmica encontrada é já dominada pelo prato (de borda simples ou espessado) e pelas taças, 50% composto por decorações brunidas internas, comuns a outras regiões do Alentejo e às Estremaduras portuguesa e espanhola.

Retrato de uma sociedade

Sabemos hoje, pela abundância de ossos de suídeos nos estratos pré-campaniformes, que a suinicultura terá sido uma das mais importantes actividades económicas de Singa desde a fundação do povoado, algures na segunda metade do IV milénio a.C. A este facto não seria estranha a existência na região de uma floresta constituída essencialmente pela espécie Quercus (azinheira, sobreiro e carvalho-português), como vimos em relação ao Monte da Tumba, que permitia disponibilizar para estes animais uma alimentação à base de bolota, a exemplo do que ainda acontece hoje em dia, nos animais criados em regime aberto, nos montados. Estamos, afinal, em presença de uma prática que se reproduziria durante milhares de anos até ao século passado (os mais velhos ainda recordam as incontáveis varas de porcos que enxameavam os caminhos, vindos de todos os pontos do Alentejo para a feira de Ferreira).

O boi, a ovelha e a cabra estão também presentes, mais o primeiro que os segundos no início do povoado, permitindo-nos supor que, nesta fase, a pecuária teria uma grande importância económica para uma população que se dividiria entre duas actividades distintas mas complementares: a agricultura (cerealicultura e horticultura) e a criação de gado/suinicultura. A caça seria abundante nas florestas e nas planícies vizinhas (o auroque, o veado e o javali eram as presas mais importantes), mas as actividades cinegéticas só ganhariam um peso acrescido durante o período campaniforme, onde terão suplantado a criação de gado.

Os bivalves sempre fizeram parte da dieta alimentar, pois nos 1000 anos de vida de Singa/Porto Torrão estão presentes desde os momentos mais recuados aos momentos mais recentes. Encontramos profusão de conchas de mexilhão, lapa e vieira (espécies marinhas) e de amêijoa e navalha (espécies estuarinas). Não nos custa admitir que o peixe, nas suas várias espécies, também fizessem parte da dieta alimentar dos habitantes de Singa. Se tivermos em conta de que o mar e o estuário do Sado se encontram a cerca de 60 km de distância, então melhor poderemos avaliar a importância do povoado e a sua capacidade de coordenar uma vasta gama de actividades económicas e um conjunto variegado de populações.

Do que sabemos até ao momento as casas dispunham de planta circular, e apresentavam pavimento constituído por caliça bem calcada, com 2 a 3 cm de espessura. As fundações seriam de pedra calcária – também usada para erguer muros e divisórias – e as paredes de taipa ou adobe, como o são ainda hoje as paredes de muitos montes alentejanos, perpetuando técnicas de construção milenares e que muitos, na sua ignorância, atribuem a uma pretensa “herança” árabe (no Monte da Tumba foi identificada uma habitação de planta circular, com 4500 anos, construída com pedras na base e adobe na parte superior, formando cúpula. As habitações de Singa, contemporâneas das do Monte da Tumba, reproduziriam um modelo comum de construção).

Se seguirmos as pistas que a arqueologia nos deixa, verificamos que em Singa há dois tempos perfeitamente definidos. No primeiro, com uma duração de 600 a 700 anos, Singa afirma-se como o centro económico, religioso e político de uma vasto território, que teria duas fronteiras naturais: a ocidente o Sado, a oriente o Guadiana. E todo esse território seria pontilhado de povoados que lhe estariam subordinados. É esse o modelo que encontramos em La Pijotilla.

Neste período pré-campaniforme coexistem no povoado duas grandes actividades económicas, a agricultura e a pastorícia/criação de gado. O porco está omnipresente, lado a lado com o boi e a ovelha. A caça é uma realidade do dia a dia, mas apenas uma actividade complementar. A cultura material de Singa não conhece grandes alterações durante estes seis ou sete séculos, mas nestes aspectos não difere dos restantes povoados do Sudoeste peninsular. As populações do Alentejo, como já tinham demonstrado aquando da manutenção dos concheiros do Vale do Sado, demonstravam um conservadorismo que se repercutiria ao longo da História. As velhas tradições e os ancestrais modos de vida eram então sagrados, como o são ainda hoje para a maioria das populações do Alentejo.

Gente que viaja pelo mar

Algures na primeira metade do III milénio a.C., contudo, o mundo que gerações de homens e mulheres tinham construído em Singa sofreria uma ruptura, aparecendo-nos a cerâmica campaniforme como a componente mais visível de uma profunda transformação cultural, social e política, e que, abarcando todo o continente, constituiria um fenómeno sem paralelo na Pré-História europeia.

O vaso campaniforme, uma obra-prima dos artesãos do Calcolítico, não tem rival na qualidade e na beleza entre a cerâmica que a olaria pré-histórica produziu. Em forma de sino invertido, as suas superfícies são ondeantes e a decoração dá origem a padrões belos e harmoniosos que preenchem a superfície externa dos diversos recipientes (vasos, caçoilas e taças). A origem do Campaniforme continua a ser um mistério. Cem anos de calorosas discussões entre os arqueólogos pouco nos deram. Se inicialmente se atribuiu à Estremadura portuguesa o seu local de origem, investigações posteriores, com recurso ao C14, estabeleceram a foz do Reno como berço do Campaniforme, a partir da evolução da cerâmica cordada local. E terá sido por mar que os vasos campaniformes chegaram à Estremadura portuguesa (remontavam ao megalitismo os caminhos marítimos entre a Bretanha e o litoral português).

Excluída há muito, pelo ridículo, a teoria de um «povo campaniforme», invasor e conquistador, fica no entanto clara a existência de pequenos grupos (talvez famílias) que viajavam por mar e com elas traziam a nova arte. Nos riquíssimos povoados da Baixa Estremadura (na cercanias de Lisboa e Setúbal) encontramos as cerâmicas campaniformes coexistindo com as cerâmicas com decoração em «folha de acácia». E no povoado de Leceia (Oeiras), fortificado, foram encontradas duas cabanas no exterior das muralhas. Contemporâneo da população que vivia dentro das muralhas e quase desconhecia o Campaniforme, o pequeno grupo humano que habitava as duas cabanas, pelo contrário, só conhecia a cerâmica campaniforme, numa clara demonstração da existência de «grupos campaniformes». Não nos custa admitir ter sido este o modelo de difusão da nova cultura no Ocidente e no Sudoeste peninsulares.

Ao Algarve, estranhamente, o Campaniforme nunca chegou, e no Alentejo a sua presença é rara, resumindo-se a algumas peças isoladas. Singa/Porto Torrão constitui, neste campo, um caso à parte, pois a cerâmica campaniforme está omnipresente, nas suas diversas manifestações, e o povoado nada fica a dever aos povoados da Baixa Estremadura, região onde a profusão e a originalidade dos achados têm atraído a atenção de todos quantos procuram as raízes deste fenómeno. Mesmo a cerâmica com decoração cordada, que como vimos anteriormente terá tido origem na foz do Reno e que é a mais antigas das manifestações campaniformes, está presente em Singa, pois nas primeiras escavações foi descoberto um vaso com esta decoração, muito frequente no Noroeste da Europa mas muito raro na Península Ibérica (em Portugal apenas se conhecem dois exemplares, sendo o segundo proveniente do Castelo Velho de Freixo de Numão, junto ao Douro).

Os excelentes oleiros de Singa

O fenómeno campaniforme alcançou Singa na primeira metade do III milénio AC, e terá sido contemporâneo das primeiras manifestações do Campaniforme na Península Ibérica, exactamente na Baixa Estremadura (estuários do Tejo e do Sado), onde terão chegado, como vimos, por via marítima, provavelmente da Bretanha. As datações de C14 atribuem mesmo à cerâmica campaniforme presente em Singa uma antiguidade nunca documentada noutros lugares da Península Ibérica (2823-2658 a.C.).

Se se levar em conta que a cerâmica campaniforme de Singa foi toda ela produzida com argila local (testes realizados assim o comprovaram), então estamos perante o mistério de saber como chegou a Singa/Porto Torrão esta nova técnica, e em que circunstâncias grupos ou populações vindos do Norte da Europa se internaram no Alentejo para, subindo o Sado, e viajando depois por terra, alcançarem Singa e aí se instalarem.

O exemplo de Leceia deixa-nos algumas pistas interessantes para compreender a chegada do fenómeno (podendo atribuí-lo a grupos exógenos), mas Leceia era um pequeno povoado e Singa um colosso, com muitos milhares de habitantes. E como veremos mais à frente esses grupos com cultura campaniforme acabariam por ganhar preponderância, alterando a velha ordem instituída. A introdução da cerâmica campaniforme seria apenas a ponta de um imenso iceberg.

Na escavação de 1982, realizada a cerca de 50 m a Sul do centro geométrico do povoado, foram feitos vários cortes, que definiram claramente três estratos a partir da superfície (1, 2 e 3) e que nos permitiram reencontrar, pela primeira vez em milhares de anos, a História de Singa. No estrato 2 encontramos a cerâmica campaniforme, numa zona bem definida e demarcada, cerâmica com decoração a pontilhado, característica das fases mais antigas do Campaniforme. À medida que nos afastamos do centro do povoado a cerâmica campaniforme cede lugar às cerâmicas características dos povoados calcolíticos do Sudoeste (taças carenadas e taças e pratos de bordo espessado).

Terra de cavalos e cavaleiros

É na zona central de Singa, com cerca de 200 m de diâmetro, localizada em torno de uma pequena elevação, num local privilegiado, que na escavação de 1982 se acharam quase todos os achados superficiais de cerâmica campaniforme. Os vestígios arqueológicos indicam que o Campaniforme produziu em Singa uma profunda transformação, que abarca as esferas cultural, económica, política e social. A caça, que durante 700 anos fora apenas uma actividade complementar, ganha grande preponderância, com especial incidência nas espécies de grande porte (veado, javali e auroque).

A análise osteológica permitiu determinar nesta fase uma tendência para o abate de animais adultos, tanto domésticos como selvagens, sendo que neste último caso se verifica a preocupação de manter um equilíbrio nas populações animais (provavelmente as primeiras manifestações ecológicas que tiveram lugar em território nacional). Os suídeos domésticos eram abatidos com 1,5 a 2 anos de idade. Dos bovídeos e ovicaprídeos havia a preocupação de abater apenas animais adultos, o que sugere o seu aproveitamento para outros fins que não exclusivamente a produção de carne, ou seja, para a produção de leite. Os bovídeos seriam igualmente utilizados na tracção de arados e carros.

Uma das maiores singularidades do período campaniforme de Singa/Porto Torrão prende com o facto de o cavalo, antes fracamente representado no povoado, aumentar o seu número de uma forma significativa. Segundo os dados arqueológicos a percentagem de ossos de cavalo excede, em Singa, as percentagens dos restantes povoados calcolíticos da Península Ibérica. Singa é na época campaniforme uma terra de cavalos e de cavaleiros.

É bem possível que estejamos na presença de uma elite guerreira, que fazia da caça a sua actividade, um pouco a exemplo dos senhores feudais da Idade Média, e segundo o arqueólogo José M. Arnaud, uma elite guerreira que se teria desenvolvido localmente, pois há uma continuidade de ocupação de Singa entre as fases pré-campaniforme e campaniforme, com uma perpetuação da cultura material da primeira fase.

Contudo ficam muitas respostas por dar. Mesmo que estejamos perante uma afirmação das elites locais, teria havido um grupo portador da cultura campaniforme que teria transmitido as novas técnicas e os novos valores. O significativo conjunto de pesos de tear encontrados no fosso 2 (estão ausentes no fosso 1) dá-nos conta da importância da tecelagem no povoado. Não deixa de ser significativo que neste fosso tenham sido descobertos, lado a lado, diferentes formatos de pesos de tear, implicando a existência paralela de duas diferentes técnicas de tecelagem… a mais recente introduzida aquando do Campaniforme.

A riqueza da cultura campaniforme já posta a descoberto em Singa, seguramente apenas uma pequena parte do muito que ainda há por descobrir, só se poderia ter imposto com a instalação de um grupo portador desta cultura. É bem possível que as elites locais se tenham deixado seduzir por toda a panóplia campaniforme, vendo na diferenciação cultural uma forma de afirmar o seu poder.

A panóplia campaniforme é constituída desde logo pela cerâmica (que alguns dizem estar ligada ao consumo ritual de algum tipo de bebida, provavelmente alcoólica), pelos elementos metálicos (adornos e jóias de ouro, que permitiam a diferenciação social), pelas armas (punhais e pontas de lança em cobre e pontas de flecha em sílex), pelos braçais de arqueiro (designação de pequenas placas rectangulares de pedra ou osso, que se crê seriam atadas à face interna do antebraço e que teriam a função de o proteger do atrito da corda do arco). Nota: a prática ritualizada do tiro com arco, na guerra como na caça, distinguia a elite do resto da população.

Uma sociedade estratificada

Rompendo com a anterior organização social gentílica, onde em teoria todos dispunham de direitos iguais, sem uma casta guerreira que sobressaísse da comunidade, o mundo campaniforme é a primeira tentativa de estratificação social que conhecemos no Ocidente, e esse talvez tenha sido o segredo do seu sucesso e da sua rápida generalização, respondendo aos anseios de pequenos grupos e famílias que, por razões diversas, se tinham afirmado no seio da sociedade mas não tinham como diferenciar-se.


Em Singa, tudo o indica, o Campaniforme é o advento de uma nova sociedade, mais injusta talvez, mas um sedutor mundo de guerreiros e de heróis. O homem comum lavra os campos e guarda o gado, os senhores e os guerreiros combatem e caçam. O cavalo, o arco, o braçal de arqueiro, as armas de cobre, as jóias e os botões de perfuração em “V” são os elementos diferenciadores da elite guerreira, lado a lado com a cerâmica campaniforme, que os hábeis oleiros de Singa depressa assimilarão e reproduzirão. A cerâmica, tudo o indica, reproduziria ela própria nas suas decorações os padrões dos saios e das capas de lã, identificativos de cada família, à semelhança dos “kilts” escoceses e dos saios dos guerreiros galaico-lusitanos. Uma das teorias mais recentes diz-nos que seria a mulher, mais que o homem, a “grande”viajante” da Europa, estabelecendo através de intercâmbios matrimoniais alianças e pactos políticos entre os líderes dos grupos calcolíticos europeus, mulheres que – tal como Penélope, esposa de Ulisses e rainha de Ítaca – seriam tecelãs, transmitindo de mães a filhas os padrões familiares.

Dominando uma constelação de pequenos povoados, controlando os fluxos comerciais de um vasto território, abastecendo a Estremadura com o cobre de Aljustrel que, transportado pelo Sado, era depois manufacturado nos povoados campaniformes situados na foz do rio, a História de Singa foi durante mais de mil anos uma história de sucesso.

A morte de um gigante

Os povoados do Sudoeste e do Ocidente peninsulares conheceram, no final do Calcolítico (cerca de 2000 a.C.), um abandono cujas razões ainda hoje divide os arqueólogos. As sociedades fragmentam-se em pequenas células, recupera-se a densa malha de povoamento neolítica e implementa-se uma colonização interna dos territórios, seguramente seguindo tendências de mudança social, que deixam já antever a Idade do Bronze.

Não há um modelo comum para ajudar a explicar os abandonos, parciais ou totais, do povoado. A pressão demográfica, levando ao esgotamento dos recursos, poderia explicar o abandono ou a segmentação populacional. Contradições internas dentro da própria sociedade, onde um segmento guerreiro em gestação começava a deixar pouca liberdade aos restantes elementos, a ambição de alguns chefes, o espírito pioneiro de um grupo que, instalado com sucesso num novo povoado, levava à replicação do exemplo. Muitas teorias se podem adiantar para tentar explicar um fenómeno de difícil explicação.

Singa/Porto Torrão não lhe escapou. Numa primeira fase o povoado ter-se-ia contraído, perdendo dimensão e ascendente sobre os povoados que durante tantos séculos dominara. Numa segunda fase é possível que as populações tenham deslocalizado o povoado para a Colina do Castelo, onde hoje se encontra o cemitério, que oferecia melhores condições de defesa. Mas no plano simbólico Singa continuava a existir, e o nome ter-se-á perpetuado. O espaço ocupado durante mais de 1000 anos era um lugar de culto, o local de residência dos antepassados, essencial para as populações de um vasto território que, ligadas entre si por laços de sangue, procuravam no espaço sagrado a sua identidade.

Singa não voltará a conhecer a sua antiga glória, e talvez por isso se enconda hoje de nós sob as lajes frias do cemitério, não nos deixando saber como viviam aqueles que apenas herdaram a memória de um tempo de grandeza. Mas nisso Singa não é diferente dos restantes povoados do Alentejo e da Estremadura. Durante o Bronze Inicial e o Bronze Pleno (aprox. 2000-1300 a.C.) o mundo dos vivos desaparece da paisagem, e só o mundo dos mortos nos surge. Tudo o que sabemos destas populações é o que “lemos” nas suas necrópoles.

Os herdeiros de Singa

Sabemos que a Idade do Bronze chegará ao Alentejo com dois séculos de atraso em relação ao Ocidente Europeu. Desta vez o conservadorismo das populações não será o principal responsável por este abraçar tardio das novas tecnologias, antes a dificuldade em obter estanho nas minas do Norte e do Centro de Portugal, pelo facto de as redes de abastecimento ainda não se encontrarem organizadas. Mas rapidamente a Estremadura se assumirá como a «placa giratória», levando o cobre do Alentejo para o Norte e trazendo o estanho da Beira Interior e do Norte de Portugal para abastecer todo o Sudoeste. Depois a Estremadura tornar-se-ia a grande plataforma onde a Europa do Norte e o Mediterrâneo se encontravam para trocar os seus produtos... mas essas são outras realidades e outras histórias, que só pontualmente nos interessam.

As populações que habitavam Singa, já não nas margens do Vale d’Ouro mas na Colina do Castelo, não diferiam das restantes populações do Bronze Pleno que habitavam o Alentejo. Viviam essencialmente da agro-pastorícia, e dispunham de uma organização social não muito diferente da vigente no Campaniforme, com a existência de uma aristocracia guerreira no seio dessas comunidades que, dirigidas por chefes locais, se mantinham independentes entre si.


Chegaram até nós tampas sepulcrais de grande beleza, representando, gravados ou em baixo relevo, uma figura central vagamente ancoriforme, que pela presença constante se pode associar a um símbolo de poder. Surge rodeada por representações de armas (espada, machado e arco). As espadas, primorosamente desenhadas, obedecem a um modelo único, com uma folha larga e triangular, grossa, encabamento arredondado, com punhal cilíndrico, rematado por pomos torneados ou esferoidais. A sua forte representação no Bronze do Sudoeste diz-nos da importância do segmento guerreiro no seio da sociedade. Atendendo à larga distribuição destas tampas sepulcrais, desde Santa Vitória a Santiago do Cacém, seguramente Singa, pela sua proximidade, não estaria excluída desta corrente cultural. Talvez um dia tenhamos também oportunidade de descobrir, no nosso concelho, uma destas tampas sepulcrais que honravam os chefes e os heróis de uma sociedade guerreira.

Entre o Bronze Pleno e o Bronze Final, e depois de uma primeira fase em que assistimos à pulverização do povoamento, podemos testemunhar a afirmação de novos centros de poder no Baixo Alentejo, que parece continuar a tradição de “habitat” concentrado de Singa/Porto Torrão, em oposição ao que conhecemos no Noroeste ou na Beira-Alta. O mais próximo de Singa, e seu sucessor, é o povoado conhecido por Outeiro do Circo, que com os seus 16 ha e rodeado por uma poderosa cintura de muralhas era, na escala da Idade do Bronze, um povoado de grandes dimensões. Situado entre Beringel e Mombeja, a escassas duas léguas de Singa, exerceria amplo controlo sobre um extenso território e Singa, assim como uma miríade de outros povoados, estar-lhe-ia subordinada.

Dominando uma extensíssima região agrícola (os ricos barros de Beja) a aristocracia guerreira do Outeiro do Circo tirava a sua riqueza, para além da milenar economia agro-pastoril, do controlo e exploração das grandes jazidas cupríferas alentejanas. Recuperava assim a matriz económica, política e social de Singa, um milénio depois.

Pouco sabemos sobre o povoado do Outeiro do Circo (os resultados das escavações de 2008 serão em breve publicados), mas acreditamos que as pedras derrubadas (e vergonhosamente roubadas!) nos irão ajudar a compreender uma boa parte da História de Singa/Ferreira do Alentejo, mais que não seja para melhor conhecermos as sociedades guerreiras da Idade do Bronze, cuja mística recua aos tempos do Campaniforme, quando os orgulhosos cavaleiros de Singa patrulhavam os caminhos do Baixo Alentejo.

BIBLIOGRAFIA (A completar posteriormente...)


CARDOSO, J. L. (2007) - Pré-História de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo.

FABIÃO, C. (1997) – O passado proto-histórico e romano. In MATTOSO, J., dir. – História de Portugal, 1: Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa.

ZILHÃO, J. (1998) – A passagem do Mesolítico ao Neolítico na costa do Alentejo. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 1:1, p. 27-44.

VIAJARAM OS «FILHOS DE DAN» ATÉ PORTUGAL?

Rufius Festus Avienus, poeta latino, escrevendo no século IV mas apoiado em velho roteiros fenícios e gregos com quase mil anos – «escritos recônditos» e «antigas páginas», nas suas próprias palavras – relata-nos no seu poema Ora Maritima que a região ocidental da Península Ibérica, antes chamada Oestrymnis, se chamava agora Ophiussa, e que o seu nome lhe vinha de uma grande invasão de serpentes que fizera fugir os antigos habitantes da terra. Os seus actuais habitantes chamavam-se Sefes e Cempsos (Saefes e Cempsi), e habitavam as colinas e os campos de Ophiussa.

Este é o mito fundador de Portugal, desde sempre desprezado pelos historiadores, mas agora olhado de novo, à luz dos últimos mapas genéticos das populações peninsulares, onde os pergaminhos celtas das populações da Galiza e do Norte de Portugal são definitivamente rasgados e substituídos por novos e inimagináveis pergaminhos berberes (Amazighs), de populações aqui instaladas desde o Neolítico e que nada têm a ver com os invasores Mouros de 711… populações estabelecidas em Oestrymnis, na Estremadura portuguesa, e daqui expulsas por uma “invasão de serpentes” que fez instalar novas populações, Sefes e Cempsos.

Durante decénios, aceitando sem discutir a Teoria das Invasões de Bosch Gispera, fizemos destas populações Celtas vindos do centro da Europa, negando as evidências arqueológicas que apontavam noutra direcção, negando Avieno que claramente nos dizia que os Cempsos, agora no ocidente peninsular, tinham o seu berço nas margens do Lago Ligustino, sendo irmãos germanos dos Tartéssios. Os fenícios tinham-nos preterido a favor destes últimos, e combatidos por uns e por outros, tinham os Cempsos partido para noroeste, arrastando na sua passagem uma multidão de povos menores.

A sua passagem como força invasora pelas planícies do Alentejo encontra-se arqueologicamente documentada, seja pelo desaparecimento súbito e inexplicável de povoados na Serra de Huelva e nas duas margens do Guadiana (o povoado de Passo Alto, na margem direita do Chança, é um caso paradigmático), seja pela alteração do modelo de povoamento no Alentejo Central, com as populações abandonando as suas quintas na planície, sem preocupações defensivas, e recuperando ou construíndo grandes povoados fortificados, no cimo dos montes, como se pode comprovar nos povoados da Serra d’ Ossa. Fundam uma primeira cidade, Dipo, que sobrevive até à epoca romana e que muito acreditam estar no subsolo de Évoramonte. E avançando para oeste e para noroeste fundam sucessivamente Beuipo (Alcácer do Sal), Olisipo (Lisboa) e Colipo (Leiria), avançando até às margens do Mondego. A terminação em “-ipo” das povoações que fundaram (os topónimos que o tempo não devorou), não nos ilude quanto à sua proveniência, pois a esmagadora maioria dos povoados em “-ipo” encontra-se a sul do Guadalquivir.

Quanto aos Sefes, nada sabemos... tirando o facto de serem exógenos (os antigos habitantes, os Estrímnios (Oestrymnici), foram expulsos e a terra ficou vazia, diz-nos Avieno). Não sabemos se os Sefes acompanharam os Cempsos no seu êxodo desde o Lago Ligustino ou se aqui chegaram na mesma altura, sendo seus aliados na conquista do país. Tudo nos leva a apostar na segunda hipótese, pois Avieno diz-nos que os vizinhos dos Cinetas eram os Cempsos, estando pois estes últimos a sul dos Sefes e, sendo mais numerosos – eventualmente pelo número de povos que arrastaram – tenham acabado por exercer alguma hegemonia política, ao ponto de serem eles a nominar os novos povoados e, alcançando o Mondego, “cercarem” pelo norte e pelo sul os Sefes.

Menos numerosos, os Sefes estabeleceram-se na Baixa Estremadura, onde partilharam os campos e as colinas com a grande coligação dos Cempsos, mas sem se unirem ou submeterem, pois Avieno identifica-os claramente. De onde vieram? De leste claramente não vieram, pois aí estão instalados os povos que a História conhecerá por Lusitanos. Do norte também não é provável, pois esse movimento impediria o êxodo dos Estrímnios aquando da “Invasão das Serpentes”. Resta-nos a via marítima, o largo oceano onde o Tejo se derrama…

O mar era uma velha e familiar estrada, que sempre trouxera gente ao ocidente peninsular. Por ele tinham viajado os pioneiros neolíticos vindos do Mediterrâneo Oriental. Por ele tinham viajado os homens e as ideias que, da longínqua Bretanha, tornaram possível o fenómeno megalítico no Alentejo Central. Por ele tinham viajado os homens e as mulheres que trouxeram o Campaniforme até Oestrymnis, desde a foz do Reno. E era em Oestrymnis, já na Era do Bronze, que se encontravam os comerciantes do nebuloso norte com os comerciantes do luminoso sul. Há cinco mil anos que o grande oceano era navegado, e há cinco mil anos que Oestrymnis era, no Ocidente, uma das principais razões porque os homens desafiavam esse grande oceano.

Perante isto, não nos custa admitir terem os Sefes alcançado Oestrymnis por mar. Teriam chegado na mesma altura em que os Cempsos, uns por mar, outros por terra. Podemos mesmo, com alguma imaginação, reconstituir os primeiros passos no novo país onde escolhiam viver. Unidos por um objectivo comum e por uma bandeira comum (a serpente) teriam os dois povos pactuado a divisão da terra. Os barcos dos Sefes, subindo o rio Tejo – mais largo do que hoje – muito para além de Santarém, transportavam os Cempsos da margem esquerda para a margem direita, derramando tropas e abrindo novas frentes de combate que rompiam as defesas dos Estrímnios. Era a grande «invasão das serpentes», que vinha pôr fim à civilização estrímnia e marcar uma nova era. Nascia o «País das Serpentes», que os Gregos, informados da lenda, traduziriam depois para Ophiussa.

Mas quem eram afinal estes Sefes que partilhavam com os Cempsos as colinas e os campos de Ophiussa? Qual a sua proveniência? Vinham da Europa do Norte ou do Mediterrâneo? Temos razões para acreditar virem do Mediterrâneo, acompanhando a colonização fenícia do Mediterrâneo ocidental, pois o surgimento quase simultâneo dos dois povos nas costas ocidentais da península não pode ser simples coincidência.

O etnónimo “Sefes” tem sido motivo de grande controvérsia. Escavando hipotéticas raízes célticas, ainda embebido pela «Teoria das Invasões» de Bosch-Gimpera, conseguira S. Lambrino ligar os Sefes, embora sem grande convicção, com o topónimo Sefulae do nordeste da Gália. Mais nos parece a nós, olhando o mito da Invasão das Serpentes, que é no hebraico tsefah «serpente» que devemos procurar a origem do etnónimo “Sefes”. Entre as doze tribos de Israel a serpente era o eterno símbolo dos Filhos de Dan, que lhes fora transmitido por Jacob no seu leito de morte:

Dan será a serpente junto ao caminho, uma víbora junto à vereda, que morde os calcanhares do cavalo e faz cair o seu cavaleiro por detrás.

Génesis, 46:17

De regresso a Canaan depois do êxodo egípcio, as sortes lançadas por Josué foram aziagas para os Filhos de Dan na distribuição dos territórios pelas doze tribos de Israel.

Saiu, porém, pequeno o termo aos filhos de Dan; pelo que subiram os filhos de Dan e pelejaram contra Leshem; e a tomaram, e a feriram ao fio da espada, e a possuíram e habitaram nela: e a Leshem chamaram Dan, conforme ao nome de Dan, seu pai.

Josué, 19:47

A divisão da terra de Canaan entre as doze tribos de Israel não significou que os territórios fossem rigorosos. Na verdade a terra não se encontrava vazia, e os Filhos de Israel, para garantirem a posse da terra que lhes coubera em sorte, tinham primeiro de conquistá-la. Belicosos, fortalecidos na guerra contra os Filisteus (que os historiadores dizem ser seus irmãos de raça) os Filhos de Dan partiram à conquista da cidade de Leshem, situada no extremo norte da terra de Canaan, no território tradicionalmente atribuído à tribo de Neftali. Esse pormenor “jurídico” não impediu a sua conquista pelos Dan. Sendo os habitantes de Leshem Sidónios (Fenícios), não nos custa admitir terem os Filhos de Dan garantido pela força das armas, também contra os Fenícios, o controlo militar de um largo “corredor” que permitia o acesso de Leshem/Dan ao mar. Ficaria este corredor entre o território de Asher e a Fenícia.

Desenvolveu-se uma relação íntima entre os Filhos de Dan e os Fenícios, ao ponto de os casamentos entre homens e mulheres dos dois povos se ter vulgarizado (o celebrado artífice que Hiram, o rei de Tiro, envia a Salomão para o ajudar na construção do templo é filho de um fenício e de uma mulher judia da tribo de Dan). Influenciados pelos Fenícios os Filhos de Dan apaixonam-se pelo mar e pelos barcos. Compreende-se assim o lamento de Débora, a profetiza:

Gilead se ficou dalém do Jordão, e Dan, por que se deteve em navios?

Juízes, 5:17

Sabemos que os Filhos de David combateram ao lado do rei David, em Hebron, onde forneceram vinte e oito mil e seiscentos combatentes, e quando David era já idoso «e cheio de dias», na altura em que fez Salomão, seu filho, rei de Israel, os Dan ainda viviam em Canaan, pois um dos seus príncipes, Azarel, está presente na cerimónia de coroação. Reinou Salomão 40 anos, e sucede-lhe seu filho, Roboão, que não consegue manter a unidade do reino, tendo apenas a seu lado as tribos de Judá e Benjamim. Por esta altura Dan faz parte das dez tribos rebeldes que coroam Joroboão rei de Israel, no norte, oposto a Joroão, em Judá, no Sul.

Em Crónicas I, contudo, na genealogia dos povos, a tribo de Dan já não figura entre as doze tribos, sendo substituída pela tribo de Levi. Em fins do século IX, princípios do século VIII, os Filhos de Dan não voltam a figurar nos livros dos profetas, pois eles, os mais idólatras de todos, desistiram da nação de Israel. E em 722 a. EC, quando os Assírios, sob o comando de Salmanaser V e depois Sargão II conquistam o reino do norte e destroem a sua capital, Samaria, deportando todos os Israelitas para a Mesopotâmia, os Filhos de Dan já tinham partido.

Acreditamos que terá sido durante o reinado de Hazael, rei de Aram-Damasco (842-805 a. EC) que os Filhos de Dan, habitando a mais setentrional das cidades de Israel, sempre sujeitos aos ataques e às pilhagens do Arameus, comprimidos num minúsculo território que não oferecia segurança para as populações, terão procurado protecção no país dos cedros.

O rei de Tiro era, por esta altura, Pummayyaton (o conhecido Pigmalião da mitologia grega), que reinaria entre os anos de 831-785 a. EC. Era lendária a índole guerreira dos Filhos de Dan, e a Pigmalião não interessava ter nas suas fronteiras (eventualmente dentro do seu país) gente tão perigosa. Havia que fazê-los partir, e o mar apresentava-se como a melhor solução. Não deixa de ser significativo ser exactamente no reinado de Pigmalião que Tiro se lança decisivamente na colonização do Mediterrâneo ocidental (Cartago, a mais famosa das suas colónias, é fundada – segundo a lenda – em 825 a. EC, pela irmã de Pigmalião, Dido).

A denominada Pedra de Nora, encontrada na Sardenha, com uma inscrição fenícia, dá-nos a conhecer alguns dos pormenores dessa colonização do Mediterrâneo ocidental, que esteve longe de ser pacífica, como durante muito tempo foi admitida. Por essa inscrição, onde aparece o nome de Pummayyaton sob o hipocorístico Pummay, ficamos a saber que o general fenício

Milkaton, filho de Shubna, general do rei Pummay, combateu
com o seu exército os Sardenhos em Tarshish, vencendo-os
e alcançando a paz.

Havendo hoje alguma unanimidade entre arqueólogos e historiadores quanto à fundação quase simultânea das colónias fenícias no Ocidente, é lícito supor que a realidade que encontramos na Sardenha (um poderoso exército fenício vencendo os autóctones e conquistando o país) se tenha repetido noutras paragens onde Tiro decidira fundar as suas colónias, e onde as relações com os autóctones se revelavam conflituosas.

Em Cartago diz-nos a lenda que Dido, tendo partido de Tiro em 825 a. EC, se estabeleceu primeiro numa ilha, fortificando-a, e que durante onze longos anos Fenícios e Líbios se combateram, até a paz ser por fim alcançada e Dido obter permissão para fundar Cartago, em 814 a. EC. O estabelecimento no sul da Península Ibérica esteve igualmente longe de ser pacífico, e Gadir, a celebrada colónia ibérica, numa ilha, foi segundo Estrabão uma terceira escolha, depois de verem goram as anteriores tentativas, em Onuba e em Sexi, onde seguramente terão sido combatidos pelas populações locais.

Mesmo em Tartessos, onde a colonização fenícia foi intensa, com Fenícios e Tartéssios beneficiando mutuamente da estreita relação, a rivalidade entre os dois povos terá sempre existido. Os autores latinos Justino e Macróbio descrevem inclusivamente algumas guerras entre os Tartéssios e os Fenícios, especialmente os de Gadir. Diz-nos Justino que os povos que viviam perto de Gadir (i. é, os Tartéssios) tinham muita inveja da nova cidade que nascia, e que atacaram os Gaditanos, que pediram ajuda aos Cartagineses, que vieram socorrê-los, acabando por conquistar uma grande parte da Hispânia.

É pouco provável que por esta altura Cartago, também acabada de ser fundada, tivesse condições para, por si só, socorrer Gadir. Mas se equacionarmos a presença de mercenários a soldo de Cartago, eventualmente numa altura em que já reinava a paz entre Fenícios e Líbios, então não nos custa admitir a transferência desses mercenários do Norte de África para a Península Ibérica.

Através da realidade púnica conhecemos bem a organização e a estrutura militar dos exércitos fenícios. Em Cartago os mercenários foram sempre preponderantes. Recrutados entre os Líbios, os Gauleses, os Iberos, os Celtiberos e os Lusitanos, com eles combateu Cartago na Primeira e na Segunda Guerras Púnicas. Com eles conquistou Amílcar Barca o seu império ibérico. Com eles marchou Aníbal Barca pelos Alpes, com os seus elefantes de guerra, para desafiar Roma na sua própria casa.

Quando Pigmalião se lança na colonização do Mediterrâneo Ocidental, nas suas frotas seguem centenas de navios, uns transportando os colonos com as suas famílias, os outros transportando os homens de armas que irão proteger as novas colónias. Temos razões para crer que esses homens de armas serão na sua maioria mercenários, soldados de fortuna que seguem acompanhados das suas famílias... gente que os azares da guerra tinha feito convergir ao reino de Pigmalião. São os Filhos de Dan, a mesma raça de guerreiros que gerara Sansão, o maior de todos os heróis hebreus, mas que, isolada no norte e diante da fúria de Hazael – que recriava o império arameu devorando a terra de Israel – se sentia incapaz de garantir a segurança das suas famílias. Emigrava agora, acompanhando os colonos fenícios, para sempre se perdendo a sua memória entre os Filhos de Israel.

Acreditamos que a última guerra guerra travada pelos Filhos de Dan por conta dos Fenícios tenha sido exactamente a que Justino nos descreve, e que os opõe a um dos povos tartéssios (que só podem ser os Cempsos, pois de outro modo não se compreenderia o seu êxodo). Derrotados estes pelos exércitos mercenários dos Fenícios, expulsos da grande ilha de Cartare, na foz do rio Guadalquivir (do que resultou a rápida ascenção da cidade de Tartessos, eventualmente neutra durante o conflito, e por isso escolhida como interlocutora privilegiada), os Filhos de Dan resolvem instalar-se por sua conta. Acabarão por escolher o ocidente peninsular, que conquistarão, lutando desta vez ao lado dos homens que combateram.

Os viajantes gregos guardarão para o futuro o nome que dão a si mesmos – Sefes, «as Serpentes» – porque assim os designara o pai de Dan, Jacob, mas também porque a serpente era, desde Moisés, a imagem totémica dos Filhos de Israel, o único ídolo admitido por D-us ao povo eleito.

E disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste; e será que viverá todo o mordido que olhar para ela. E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e era que, mordendo alguma serpente a alguém, olhava para a serpente de metal, e ficava vivo.

Números, 21:8-9

Autorizada por D-us, abençoada por Moisés e materializando a profecia de Jacob em relação à sua tribo, a serpente de metal terá sido especialmente acarinhada pelos Filhos de Dan, que a tornaram seu estandarte. A serpente prestigiava-os igualmente junto dos Fenícios, ou não fosse ela uma das representações de Baal e símbolo da sabedoria divina... Baal, o deus que eles sempre tinham adorado, e a que se tinham definitivamente rendido, esquecendo Iavé. Mas como podiam eles ter resistido ao chamamento do mais antigo dos deuses de Canaan, tão isolados no norte da terra de Israel e tão perto dos Fenícios, se mesmo Salomão, com toda a sua sabedoria, não fora capaz de o fazer?

Ao contrário dos Cempsos, não temos um conhecimento exacto dos povoados onde os Sefes se instalaram depois da conquista do novo país, mas a matriz orientalizante de Santarém, o seu nome primitivo (Scalabis) e a lendária antiguidade da sua comunidade judaica, fazem-nos equacionar ter sido este povoado, localizado num planalto implantado no mesmo maciço calcário estremenho que já merecera a atenção dos pioneiros neolíticos, terá merecido igualmente a sua atenção e terá sido um dos locais onde se terão instalado. Não deixam de ser curiosas as analogias entre Scalabi(s) e Saalabin (uma cidade dos Filhos de Dan, em Canaan) e entre Balatha (designação árabe do Ribatejo e Oeste, mas herança muito antiga) e Baalath (localidade e região dos Filhos de Dan, mas também a forma feminina de Baal, o deus da fertilidade).

Não se sabe ao certo quando o corónimo Sefarad passou a designar Península Ibérica, embora muitas hipóteses se tenham avançado até hoje. Tudo indica ter sido a tradição rabínica medieval a consolidar o corónimo, designando deste modo a península onde os Judeus viviam a sua Idade de Ouro. No livro de Obadias, Sefarad designa o local onde se encontram os cativos de Jerusalém:

E os cativos deste exército dos filhos de Israel, que estão entre os cananitas, possuirão até Jarefath; e os cativos de Jerusalém, que estão em Sefarad, possuirão as cidades do sul.

Obadias, 1:20

Pensamos que nunca foi equacionada, pela sua obviedade, a ligação entre o etnónimo Sefes e o corónimo Sefarad. A verdade é que, na nossa preocupação de celticizarmos os Sefes, nunca conseguimos abrir o nosso espírito a outras possibilidades... e a etimologia de Sefarad foi sempre uma incógnita. Mas se no hebraico juntarmos o substantivo “tsefah” (serpente) e o verbo “radah” (dominar, governar), teremos um corónimo Tsefarad, Sefarad (= O Domínio das Serpentes). É afinal o mesmo corónimo que os Gregos traduziriam por Ophioussa, com o mesmo significado, «O País das Serpentes», o país que os Sefes/Filhos de Dan renomearam e onde definitivamente se instalariam.

Quando no Atlântico muitos buscam, de forma fantasiosa, os Filhos de Dan entre os Dinamarqueses (Danmark), os ingleses (Lon-Dan) ou os irlandeses (Tuatha dé Danan, do Livro das Invasões), mais crível seria o corónimo Lusitânia, cuja origem é um mistério, ser apenas uma deturpação de Luzidanya, onde o primeiro elemento, Luz, designa a Cidade dos Imortais na tradição hebraica (onde o Anjo da Morte não consegue entrar e para onde o rei David se teria retirado no final da vida e onde ainda vivia) e um osso da coluna, indestrutível pelo Homem, pelo Tempo ou pelos elementos, e o eixo da ressurreição. Eterna evocação dos Filhos de Dan, o corónimo Luzidanya, o nome hebraico de Portugal, perpetuaria a memória da tribo perdida de Israel que ganhara raízes no Ocidente europeu.

Mas as nossas balizas são os factos históricos, não as fantasias. E os factos históricos apontam claramente para que os Filhos de Dan, refugiados no país dos cedros aquando das ferozes campanhas militares de Hazael contra Israel, tenham sido recrutados como mercenários por Pigmalião, seguindo com as suas famílias nas frotas fenícias onde seguiam os homens e mulheres de Tiro que iam colonizar o Mediterrâneo Ocidental. Com o nome de Sefes (=As Serpentes) acabariam por se estabelecer no ocidente da Península Ibérica, onde aliados aos Cempsos conquistariam o país que Avieno nos diz chamar-se Ophiussa, «País das Serpentes». Este corónimo será apenas uma tradução de Sefarad, o nome que na sua língua deram ao país onde definitivamente se instalavam.

Hoje poucos conhecem (e muitos recusam conhecer) o mito fundador da nossa terra ocidental, onde os Filhos de Dan, uma das doze tribos de Israel, fortemente aculturados pelos Fenícios, desempenharam um papel determinante, deixando para o futuro uma pegada histórica e genética no território que é hoje Portugal.

Oitenta gerações de homens e mulheres, vinte longos séculos, permeiam entre o nascimento de Ophiussa e o nascimento de Portugal. Dir-se-ia que a plaina do tempo, arrancando lascas sobre lascas à memória dos vivos, teria feito desaparecer o mito fundador, a lenda da Invasão das Serpentes. Surpreendentemente a tsefah, «a serpente», símbolo e estandarte dos Filhos de Dan (os Sefes), iria sobreviver através dos tempos, ressurgindo sob a forma da serpente alada (o dragão), oficialmente o timbre dos reis de Portugal desde D. João I, embora um documento apócrifo atribua a sua adopção a Afonso Henriques, que teria recuperado a «serpente de Moisés» e a usaria como símbolo pessoal (já fora símbolo pessoal dos reis suevos, que a tinham copiado do «draco» das legiões de Marco Aurélio, no tempo em que os Quados combatiam Roma nas Guerras Marcomanas).

É no Mosteiro da Batalha que podemos encontrar as mais antigas representações do dragão em terras portuguesas. Está presente na chave da abóbada na Capela do Fundador, e numa pedra de armas sobre a porta sul da Igreja. Em ambas surge o dragão representado de frente. No selo real, porém, o dragão só se irá impôr a partir de D. Afonso V (num selo de chancelaria deste soberano, apenso a um documento datado de 1450, surge-nos o dragão, de perfil, bem visível e expressivo).

Com D. Manuel I, um dos maiores cultivadores do património heráldico português, as armas reais adquirem belíssimas representações. No armorial designado por «Livro da Torre do Tombo» temos uma explêndida iluminura, o padrão oficial das armas do rei de Portugal, com o dragão de ouro, de frente, olhando à esquerda do observador. Esta é a melhor fonte para conhecermos a cor do dragão do rei de Portugal – ouro, o mais nobre dos metais – e não verde como alguns o representarão mais tarde, erroneamente.

Já no século XV se sabia no estrangeiro que o dragão era a cimeira do rei de Portugal, e por extensão o símbolo do país, com vários armoriais representando este animal fantástico, de ouro ou prata, sempre enqunto símbolo de Portugal. Assim acontece no Armorial Equestre do Tosão de Ouro e da Europa (c. 1450), onde uma espectacular figura de cavaleiro – o Roy de Portighal – tem como timbre, sainte da sua coroa aberta, um dragão de ouro, posto de frente, com os seus membros visíveis. O mesmo se repetirá nos armoriais de Clemery (século XV), Donaueschigen (1433), Grunenberg (1483), Schnitt (século XV).

No século XVI D. Sebastião é o último rei a representar o dragão como timbre da monarquia portuguesa e de Portugal. Mas no século XVII, restaurada a independência, numa curiosíssima estampa da obra Lusitania liberata ab injusto Castellanorum, datada de 1645, vê-se um dragão possante, coroado com a coroa real fechada, atacando e vencendo um leão – o dragão português vencendo o leão espanhol. Este simbolismo do dragão, finalmente identificado com a nação portuguesa e não só com os seus reis, está bem patente numa brilhante metáfora de um dos sermões do padre António Vieira, que nos confirma o dragão nas armas de Portugal no século XVII.

Eu não direi que S. João no seu Apocalipse levantou figura aos que nascem em Portugal; mas há muitos dias que naquelas suas visões de Patmos tenho observado uma notável pintura, na qual estão retratadas ao vivo as fortunas ou influências deste fatal nascimento:

Signum magnum apparuit in coelo mulier amieta Sole, et Luna sub pedibus ejus, et in capite ejus corona Stellarum duodecim: et in utero habens, clamabat parturiens. Visum est et aliud signum in coelo: et ecce Draco magnus: et Draco stetit ante mulierem, quae erat paritura; ut cum peperisset risset filium ejus devoraret.

Esta é em suma a história da visão, na qual diz o Evangelista, que viu primeiramente uma mulher vestida do Sol, coroada de Estrelas, e com a Lua debaixo dos pés, a qual estava de parto, e dava vozes. E que logo apareceu diante desta mulher um grande Dragão, o qual com a boca aberta, estava esperando que saísse à luz o filho para lho tragar e comer, tanto que nascesse. Infeliz menino, antes destinado às unhas e dentes do Dragão, que nascido! Mas que Dragão, que mulher, e que filho é este? O enigma é tão claro, que pelas figuras sem letra se pode entender. A mulher vestida de luzes, o mesmo nome diz, que é a Lusitânia: as luzes são as que ouvistes o ano passado; e o ter a Lua debaixo dos pés, é a maior expressão da mesma figura; porque a Lusitânia foi a primeira em toda a Espanha, que sacudiu o jugo dos Sarracenos, e tantas vezes então, e depois meteu debaixo dos pés as Luas Maometanas. O parto, que a fazia bradar, são os filhos, ou partos da Lusitânia, não todos, senão aqueles com quem ela dá brado no mundo. E o Dragão, finalmente já preparado para tragar esses filhos, é aquele mesmo Dragão que Portugal tem por timbre das suas armas; porque é timbre da nossa Nação, tanto que sai à luz quem pode luzir, tragá-lo logo, para que não luza. De maneira que a mulher e o Dragão em tão diferentes figuras, uma humana, outra sem humanidade, ambas vêm a ser a mesma coisa; porque como mulher pare os filhos, e como Dragão os traga depois de nascidos.

Padre António Vieira
Sermão de Santo António


Até ao fim da monarquia a serpente alada (dragão) estará sempre presente, nas diversas representações heráldicas portuguesas (no mobiliário real, por exemplo, como pode ser verificado no Palácio da Ajuda). Uma das mais notáveis representações, contudo, é o Carro Triunfal, o coche da embaixada ao Papa Clemente XI, que fazia parte do conjunto de cinco coches temáticos e dez de acompanhamento que integraram o cortejo da Embaixada enviada pelo rei D. João V ao Papa, em 1716. Alusivo ao tema da coroação de Lisboa, capital do Império, vitoriosa na defesa da Fé cristã.

O exterior apresenta caixa aberta forrada a seda vermelha, decorada com esculturas de talha dourada, em estilo barroco. No jogo dianteiro apresenta uma alegoria em que um génio parece conduzir o carro, tendo a seu lado as figuras simbólicas do Heroísmo e da Imortalidade. No cabeçal, do jogo traseiro, a figura de Lisboa coroada pela Fama e pela Abundância que segura uma elegante cornucópia de flores e frutos. Aos pés de Lisboa, o dragão alado, símbolo da Casa Real, quebra o crescente muçulmano, perante a figura de dois escravos agrilhoados, que representam a África e a Ásia.

Com a revolução republicana toda a simbologia monárquica e todos os simbolos que estavam relacionados com a monarquia são varridos. São vandalizados os monumentos e as coroas arrancadas. A bandeira nacional, a liberal, bipartida de azul e branco, será substituída por outra, igualmente bipartida, agora de vermelho e verde. De igual modo a serpente alada, o dragão, que Afonso Henriques tornara seu símbolo pessoal, se iria perder.

Mas não acreditamos que a Serpente de Moisés, presente no território português desde c. 800 a. EC., quando os Filhos de Dan/Sefes aqui aportaram nos seus navios, se tenha perdido para sempre. A serpente e o dragão fazem parte do nosso simbólico, fazem parte da História de Portugal. Este é, afinal, o País das Serpentes, a terra de Ophiussa.

José Galazak

BIBLIOGRAFIA

ADAMS, S. M., et al. (2008) - The genetic legacy of religious diversity and intolerance: Paternal lineages of Christians, Jews, and Muslims in the Iberian Peninsula. The American Journal of Human Genetics. New York. 83, p. 725-736.

ALARCÃO, J. de (1992) – Etnogeografia da fachada atlântica ocidental da Península Ibérica. Complutum. Madrid. 2-3, p. 339-345.

ALARCÃO, J. de (2001) – Novas perspectivas sobre os Lusitanos (e outros mundos). Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 4:2, p. 293-349.

ALMEIDA, J. F., trad. (1968) - Bíblia Sagrada. Lisboa: Sociedades Bíblicas Unidas.

AVIENO (1985) – Orla Marítima, ed. J. Ribeiro Ferreira. Coimbra: INIC (Textos Clássicos; 23).

AZEVEDO, F. A. de (1981) – Expressivo emblema da sociedade histórica da independência de Portugal. Independência, Revista de Cultura Lusíada. (S.l.): 2:3.

CALADO, M., BARRADAS, M., MATALOTO, R. (1999) – Povoamento proto-histórico no Alentejo Central. Revista de Guimarães, Volume Especial, I. Guimarães, p. 363-385.

CARDOSO, J. L. (2007) - Pré-História de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo.

ESCACENA CARRASCO, J. L. (2001) – Fenicios à las puertas de Tartessos. Complutum. Madrid. 12, p. 73-96.

FABIÃO, C. (1997) – O passado proto-histórico e romano. In MATTOSO, J., dir. – História de Portugal, 1: Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa.

FLORES, C. (2004) - Reduced genetic structure of the Iberian peninsula revealed by Y-chromosome analysis: implications for population demography. European Journal of Human Genetics. Leiden. 12, p. 855-863.

GONÇALVES, R., et al. (2005) - Y-chromosome lineages from Portugal, Madeira and Açores record elements of Sephardim and Berber ancestry. Annals of Human Genetics. London. 69, p. 443-454

MATALOTO, R. (2004) – Meio Mundo: o início da Idade do Ferro no cume da Serra d’Ossa (Redondo, Alentejo Central). Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 7:2, p. 139-173.

PÉCORA, A., ed. (2001) – Padre António Vieira: Sermões. Vol. 2. S. Paulo: Hedra.

PEREIRA, L., PRATA, M. J., AMORIM, A. (2000) – Diversity of mtDNA lineages in Portugal: not a genetic edge of European variation. Annals of Human Genetics. London. 64, p. 491-506.

PEREIRA-MENAUT, G. (2001) – Fundamento históricos para o estudo (xenético) da poboación do noroeste peninsular. In Os Outros e Eu. Porto: Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP).

PIMENTA, J., CALADO, M., LEITÃO, M. (2005) – Novos dados sobre a ocupação pré-romana da cidade de Lisboa: as ânforas da sondagem n.º 2 da Rua de São João da Praça. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 8:2, p. 313-334.

SEMINO, O. et al. (2004) – Origin, Diffusion, and Differentiation of Y-Chromosome Haplogroups E an J: Inferences on the Neolithization of Europe and Later Migratory Events in the Mediterranean Area. American Journal of Human Genetics. New York. 74, p. 1023-1034

SOARES, A. (2003) – O Passo Alto: uma fortificação única do Bronze Final do Sudoeste. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 6:2, p. 293-312.

SOARES, A. (2005) – Os povoados do Bronze Final do Sudoeste na margem esquerda portuguesa do Guadiana: novos dados sobre a cerâmica de ornatos brunidos. Revista Portuguesa de Antropologia. Lisboa. 8:1, p. 111-145.

SPÍNOLA, H., MIDDLETON, D., BREHM, A. (2005) – HLA genes in Portugal inferred fron sequence-based typing: in the crossroad between Europe and Africa. Tissue Antigens. Melbourne. 66, p. 26-36.

TORRES ORTIZ, M. (198O) - La cronología absoluta europea y el inicio de la colonización fenícia en Occidente: Implicaciones cronológicas en Chipre y el Próximo Oriente. Complutum. Madrid. 9, p. 49-60.

TORRES ORTIZ, M. (2005) – Una colonización tartésica en el interfluvio Tajo-Sado durante la Primera Edad del Hierro? Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 8:2, p. 193-213.

TSIRKIN, J. B. (1992) – Romanization of Spain: socio-political aspect. Gerión. Madrid. 10, p. 205-241.

TSIRKIN, J. B. (1997) – The Phoenicians and Tartessos. Gerión. Madrid 15, p. 243-251.

TYKOT, R. (1994) – Sea peoples in Etruria? Italian contacts with the Eastern Mediterranean in the Late Bronze Age. Etruscan Studies. Journal of the Etruscan Foundation. Fremont. 1, p. 59-83.

WIIK, K (2008) – Where did european men come from? Journal of Genetic Genealogy. New York. 4, p. 35-85.

ZALLOUA, P., et al. (2008) – Identifying genetic traces of historical expansions: Phoenician footprints in the Mediterranean. The American Journal of Human Genetics. New York. 83, p. 633-642.

ZILHÃO, J. (1998) – A passagem do Mesolítico ao Neolítico na costa do Alentejo. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 1:1, p. 27-44.

Yaish ibn Yahya «ben Rabbi» (= Mem Ramires): Um príncipe judeu, herói da conquista de Santarém


A mitificação da figura do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, conheceu várias fases, a primeira das quais terá tido início nos fins do século XII, tendo sido levada a cabo pelos monges de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro fundado em 1131 por D. Teotónio (depois S. Teotónio) e onze outros religiosos, pertencentes à ordem dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho.

Uma longa narrativa épica em latim (um poema em prosa, na feliz designação de A. Herculano), com o pomposo título de “Quomodo sit capta Sanctaren civitas a rege Alfonso comitis Henrici filio” («Como foi capturada a cidade de Santarém pelo rei Afonso, filho do conde Henrique») eleva a figura do primeiro rei de Portugal à altura de um herói mítico. Incluído por A. Herculano na “Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores” (V. I), publicado em 1854, este manuscrito seria por ele renomeado de “De expugnatione Scalabis” («Da conquista de Santarém»), nome pelo qual é actualmente conhecido.

Os pormenores da empresa são sobejamente conhecidos: Afonso Henriques, querendo conquistar aos Mouros a poderosa cidade de Santarém, simultaneamente um ninho de aguerridas vespas de onde partiam as algaras que açoitavam as terras de Coimbra e uma barreira que impedia a progressão das suas tropas pela Balatha muçulmana (Estremadura) e mais para sul, para as terras de Além Tejo, urdiu a melhor forma de a tomar.


É então enviado um espião a Santarém, Mem Ramires de seu nome, cavaleiro e homem de confiança do rei, que percorre incógnito a cidade e o poderoso castelo do governador, Abu Zakariya, para avaliar as suas vulnerabilidades defensivas. Cumprida com êxito a missão, regressa Mem Ramires a Coimbra com as preciosas informações. Afonso Henriques reúne então uma pequena força militar, constituída por cavaleiros da sua confiança, e parte para Santarém, que alcança ao fim de quatro dias, jornadeando de noite e acampando de dia, de modo a iludir os esculcas sarracenos. Numa noite de sábado, de 14 para 15 de Março de 1147, socorrendo-se de dez escadas de assalto, um grupo de homens capitaneados por Mem Ramires sobe às muralhas, domina as sentinelas, hastea o pendão real e abre os portões para que o resto do exército possa entrar. O formidável castelo de Santarém voltava às mãos portuguesas, desta vez para sempre.

Eis, muito resumidamente, o essencial da narrativa épica «De Expugnatione Scalabis», que por ter sido escrita no final do século XII pode ser considerado um relato credível sobre a conquista de Santarém e onde Mem Ramires nos aparece como figura-chave, aliada à do rei. Mas quem é afinal Mem Ramires, esse cavaleiro com quem o rei de Portugal partilhava os seus sonhos militares? Não sabemos. É uma personagem misteriosa. Não pertence às antigas famílias que possuem honras e tenências entre o Minho e o Vouga, nem pertence à nobreza mais recente, de origem franca ou moçárabe, que habita em Coimbra, enriquece com a guerra e vive de postos de alcaides. A verdade é que este herói surge do nada para conquistar Santarém e eclipsa-se de seguida, como se na verdade nunca tivesse existido. Mas «De Expugnatione Scalabis», por ter sido escrita no final do século XII - seguramente com muitos dos seus participantes ainda vivos – pode e deve ser considerado um relato credível. Acreditamos que o essencial da história está lá… mas adaptado pelos historiógrafos de Santa Cruz. Vejamos como e porquê.

Olhemos primeiro para a realidade social e económica da cidade que Mem Ramires ajudou a conquistar. Santarém era um paraíso na Terra para os muçulmanos. A fertilidade das suas lezírias era lendária (em 40 dias as searas estavam prontas para ceifar!) e o rendimento médio do grão era de cem por um, sendo nos melhores anos de duzentos por um. Os melões eram enormes e doces como o mel. Hortas e pomares produziam legumes e frutos excelentes. O seu porto fluvial recebia os barcos de alto mar que, subindo o Tejo, abasteciam directamente a cidade.

Fonte: www.flickr.com

Esta riqueza agrícola – que alguns geógrafos árabes assemelham à do Egipto, comparando as cheias do Tejo às do Nilo – e a necessidade de a comercializar para vários pontos do Gharb e do Andalus, fizera domiciliar em Santarém uma numerosa comunidade judaica, talvez desde os tempos do Império Romano, e não é de estranhar que todos os relatos a indiquem como tendo a mais antiga sinagoga do ocidente peninsular. Por outro lado Coimbra dispunha igualmente de uma numerosa comunidade judaica, aí instalada provavelmente nos tempos em que Qulumriyya era uma cidade muçulmana, e que aí permanecera depois da reconquista cristã.

Quando Afonso Henriques, decidido a conquistar Santarém, opta por enviar um espião à cidade, ele sabe que esse homem não terá tarefa fácil. Santarém, para além do seu castelo quase inexpugnável, é uma caserna. A sua numerosa e aguerrida guarnição militar tem uma longa experiência de guerra, e o alcaide, Abu Zakariya, é uma velha raposa, que tem sabido conter os Portugueses nas suas fronteiras, pela latitude de Leiria, ameaçando o castelo e fustigando os seus termos. Santarém é um ninho de víboras, e o rei de Portugal sabe-o bem. Ao menor deslize o seu espião será denunciado e morto.

O homem que enviar a Santarém não pode levantar quaisquer suspeitas entre os Mouros. Tem de caminhar entre eles como se fosse mais um habitante da cidade. Um cristão, mesmo um moçárabe de Coimbra, conhecedor da língua de Mafoma, poderia fazer perigar a missão, pois não teria contactos em Santarém, que lhe servissem de retaguarda em caso de suspeita. Em Coimbra viviam cristãos e judeus, e em Santarém viviam muçulmanos e judeus. E nunca cristãos e muçulmanos deixaram de manter relações comerciais entre si, mesmo nos piores períodos de guerra. Os judeus encarregavam-se de fazer a ponte entre os dois mundos… como o faziam ali, entre Coimbra e Santarém. Podendo apostar na lealdade de um judeu de Coimbra, quem senão um elemento desta comunidade para entrar tranquilamente em Santarém sem despertar as atenções dos Mouros? Quem mais que um almocreve judeu – ou alguém assim disfarçado, mas com sólidas ligações à comunidade judaica de Santarém – para efectuar uma empresa tão arriscada sem atrair as atenções?

A ideia terá congeminado no espírito de Afonso Henriques, e rapidamente se tornou uma certeza para o rei: para que a missão de espionagem fosse um sucesso o homem a enviar a Santarém teria de ser um judeu, um aliado da sua inteira confiança com ligações sólidas na cidade. Aí poderia mover-se à vontade, entre o seu povo, sem que os muçulmanos dele desconfiassem. Afinal, seria apenas mais um judeu na sua azáfama mercantil…

O rei de Portugal tinha o homem certo para essa missão. O seu nome era Yaish ibn Yahya, e embora português de nascimento, nas suas veias corria o sangue do rei David, de quem era um dos mais insignes descendentes. Por esse facto era também conhecido por Ha-Nasi («o príncipe»). Era filho de Hiyya al-Daudi, venerável rabino, conselheiro de Afonso Henriques, gaon dos judeus de Sefarad (acabaria por falecer numa das suas viagens, em 1154) e poeta litúrgico, cujos hinos ainda hoje são usados nas comunidades sefaradim, um pouco por todo o mundo.


Longa viagem fizera Hiyya al-Daudi até chegar a Portugal, pois nascera na Babilónia, em Pumbedita, bisneto de Hezekiah Gaon, o 38.º exilarca e último líder desta grande academia talmúdica, torturado até à morte em 1040. Não se sabe em que circunstâncias aparece Hiyya al-Daudi na corte portuguesa, em Coimbra, mas não é de excluir ter vindo para Portugal com D. Henrique, pai de Afonso Henriques, aquando da peregrinação deste à Palestina entre os anos de 1103 e 1104, acompanhado por D. Maurício Burdino, o bispo de Coimbra (que se tornaria depois o antipapa Gregório VIII, entre 1118 e 1121).

São estes os pergaminhos do homem que tornou possível a conquista da cidade de Santarém, o príncipe judeu que os cónegos de Santa Cruz, indignados com a mitificação de um herói de religião judaica, tornaram cristão. E deste modo, com uma simples adaptação fonética do nome, o judeu Ben Rabbi tornava-se o cristão Mem Ramires.

Yaish ibn Yahya, conhecido entre o seu povo por «Ben Rabbi» e por «Ha-Nasi», e com a alcunha entre os cristãos de «O Negro», é o fundador da mais distinta família judia portuguesa (e uma das mais distintas famílias judias europeias), cujos descendentes, com os apelidos Ibn Yahya, Negro e Preto/Pretto, podemos encontrar um pouco por todo o mundo. Um excelente guerreiro, em cujas veias corria o intrépido sangue do rei David, Yaish ibn Yahya foi amigo e companheiro de armas de Afonso Henriques. Pela sua lealdade e coragem recebeu o título de “Dom”, só concedido pelos reis de Portugal em recompensa de grandes serviços, assim como algumas honras e tenências, das quais as mais conhecidas são as das localidades de Unhos, Frielas e Aldeia dos Negros (esta última no concelho de Óbidos). D. Yaia (como seria conhecido) receberia igualmente a alcunha de «O Negro», que transmitiria aos seus descendentes (Preto e Pretto são variações do original) a par de Ibn Yahya.

Muitas inverdades se tem escrito a este respeito, seja confundindo as personagens de Yaish ibn Yahya (nascido entre 1110 e 1120 e falecido em 1196) com seu filho, Yahya ben Yaish Ibn Yahya (1150?-1222). Este último, que Meyer Keyserling, erradamente, faz contemporâneo de Afonso Henriques, é na verdade contemporâneo de D. Sancho I, a quem serve como almoxarife do reino. Judeu riquíssimo, senhor de vastos domínios, tal como seu pai conselheiro do rei, herdará dele o título de «Dom» e a alcunha de «O Negro».

Muitos dizem vir esta alcunha do facto de serem senhores da Aldeia dos Negros, em Óbidos. Não cremos que assim seja. Na verdade mais acreditamos que a alcunha, a exemplo de outras alcunhas, comuns na época (tomemos por exemplo Fernão Peres «Cativo», o poderoso mordomo do reino) adviesse de características particulares, neste caso relacionadas com a cor do vestuário (o vestuário dos cavaleiros cristãos era o brial branco com a cruz, sobre a cota de malha). Enquanto judeu Yaish ibn Yahya, para não usar o símbolo da cruz, vestiria de negro, donde herdaria a alcunha. Mas assim sendo fica por explicar a origem do topónimo «Aldeias dos Negros…

Acreditamos, embora não tenhamos provas documentais para o comprovar, que Yaish ibn Yahya não seria o único judeu a combater ao lado de Afonso Henriques, havendo mesmo uma brigada de combatentes judeus sob as ordens de Yaish. Não deixa de ser sintomático que um dos três embaixadores de Afonso Henriques que vai a Santarém informar Abu Zakariya de que as tréguas do rei dos Portugueses estavam rompidas se chame Martim Mohab (seria Matan Moab?). Lembramos que Moab é o nome bíblico de uma região da Transjordânia que confina com o Mar Morto, e que foi conquistada pelo rei David (havia um poderoso clã judaico conhecido por Pahat-Moab, «governador de Moab», que dizia descender dos antigos delegados do rei David na região).

Se uma brigada de combatentes judeus acompanhasse Yaish ibn Yahya – o que não seria de estranhar, se tivermos em conta que estamos em presença de um príncipe judeu – então todos vestiriam de negro. A Aldeia dos Negros não teria, assim, nada a ver com os Mouros (só por má vontade e desconhecimento se pode classificar como “negro” o povo Amazigh, os Mouros, a única raça branca de África), sendo apenas o nome dado a uma aldeia nas proximidades de Óbidos, “colonizada” pelos guerreiros judeus que seguiam Yaish ibn Yahya e lutavam ao lado dos cristãos, ao lado dos seus irmãos portugueses.

Talvez a História, um dia, faça justiça a todos estes heróis judeus, também eles pais fundadores da pátria portuguesa e que Portugal tão vilmente tratou. Talvez um dia possamos todos admitir corajosamente que o conquistador de Santarém se chamava Yaish ibn Yahya, era um príncipe judeu e uma notável semente do rei David.

David e Golias - Caravaggio

Samuel Galazak